O artista acentua como o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, é fundamental como espaço de memória do país, e destaca a pouca presença de artistas afrodescendentes na cena brasileira de artes – majoritariamente branca.
O ensaio Encomendador de almas (2006) tem como mote a figura de 'Seu Crispim', remanescente do quilombo do Baú, na região de Araçuaí (MG), responsável na comunidade por fazer a transição entre o mundo dos vivos e dos mortos.
O sincretismo religioso é retratado por Neves na série Arturos (1993-1997), sobre a comunidade quilombola localizada em Contagem (MG). Esse ensaio projetou o trabalho do fotógrafo em galerias brasileiras e estrangeiras
Na série Objetivação do corpo (1999), Neves questiona a exploração do corpo feminino pela mídia.
Uma das fotos do ensaio Futebol, realizado entre 1998 e 1999, entre o bairro de Santa Tereza e o centro de Belo Horizonte. A série ganhou desdobramento em 2014, na cidade de Diamantina, onde atualmente reside o fotógrafo.
A palavra 'carregado' repete-se em várias fotos do ensaio Valongo: cartas ao mar (2015-2016) para denunciar a reificação da população negra no passado e no presente. Aqui, aparece em um retrato de Neves, aos 17 anos, tirado de uma carteira de identidade.
Não é por acaso que Eustáquio Neves mora e trabalha na rua Arthur Bispo do Rosário, na cidade de Diamantina, interior de Minas Gerais. Há sete anos ele e a esposa, a historiadora Lilian Oliveira Neves, tiveram a ideia de dar à pequena via o nome de um dos maiores artistas visuais brasileiros, que passou parte da vida como interno de um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. “Após ver uma exposição de Bispo do Rosário [1909-1989] no início dos anos 1990, percebi que não precisava ter pudor em transgredir”, conta o fotógrafo mineiro.
Desde então, Neves começou a manipular negativos, espécie de marca registrada da carreira iniciada em 1992, com Caos Urbano. Já naquele ensaio, onde retrata uma comunidade sem-teto na periferia de Belo Horizonte, nota-se também outro ponto crucial em sua produção: o lugar do negro dentro da sociedade brasileira. “Vivemos quase quatro séculos como escravos no Brasil, mas até hoje, 129 anos após a abolição da escravatura, continuamos invisíveis para uma grande maioria branca que parece acreditar que o país foi feito exclusivamente para ela”, constata.
Essa preocupação também está presente em seu mais recente trabalho, Valongo: Cartas ao Mar (2015-2016), inspirado na história do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. O local, que recebeu entre 500 mil e 900 mil africanos escravizados entre os séculos 18 e 19, ganhou em julho passado o título de Patrimônio Mundial da Unesco. Desde então, passou a ser considerado um “lugar de memória”, a exemplo de Auschwitz e Hiroshima. “É fundamental lembrar para não esquecer: a história de Valongo faz parte da história de todos os afrodescendentes do Brasil”, acentua Neves.
C& América Latina: Como surgiu a ideia do ensaio Valongo: Cartas ao mar?
Eustáquio Neves: Esse ensaio foi encomendado em 2015 pelo antropólogo e fotógrafo Milton Guran, diretor do FotoRio [Encontro Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro], que na época participava do comitê técnico da candidatura do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial. A ideia do ensaio, que foi exposto pela primeira vez no FotoRio, em 2016, remete à prática de lançar ao mar cartas dentro de garrafas: são mensagens para que as pessoas nunca se esqueçam e sempre reflitam sobre a tragédia da escravidão. Além de memória, as imagens também falam sobre a morte.
A região de Valongo não era apenas uma porta de entrada, mas também um cemitério onde eram jogados em vala comum os corpos dos africanos que chegavam mortos após a longa e insalubre travessia de navio entre a África e o Brasil. Agora acontece a morte da memória do lugar: com a atual revitalização, muitas delas vão ser sepultadas por alguns projetos que são bastante higienistas.
C&AL: O Cais do Valongo foi construído em 1811, aterrado por décadas e reencontrado durante escavações feitas durante as obras de revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro, iniciadas pela prefeitura carioca em 2011 com vistas aos Jogos Olímpicos de 2016. Como você vê desse processo de revitalização?
EN: Acho que existe ali uma grande contradição. Se, por um lado, essa revitalização atrai visitantes para uma área outrora abandonada pelo poder público, por outro acaba repetindo uma opressão do passado. Isso porque a grande maioria dos moradores da região são pessoas simples, de baixo poder aquisitivo, e o custo de vida local aumentou muito desde então, a exemplo do valor dos alugueis. Ou seja, a revitalização se tornou um processo excludente.
A palavra "carregado" se repete em várias fotos do ensaio "Valongo: cartas ao mar" (2015-2016) para denunciar a reificação da população negra no passado e no presente. Aqui, aparece em um retrato de Neves, aos 17 anos, tirado de uma carteira de identidade.
Antes os artistas ficavam à mercê de curadores e galerias; atualmente têm maior autonomia, graças às redes sociais e também pelo fato de se apropriarem mais das ruas.
C&AL: Como foi a produção desse ensaio?
EN: Primeiro, li o dossiê elaborado para a candidatura de Valongo a Patrimônio Mundial, composto de várias páginas, para conhecer melhor a história do lugar. Depois fui ao Rio de Janeiro com a intenção de fotografar a região e também fazer um vídeo, mas resolvi apenas conversar com os moradores e comerciantes locais ao longo de uma semana. Ao voltar para Diamantina, onde moro, após digerir toda aquela informação, decidi trabalhar com retratos de amigos que havia feito no passado e até mesmo com um autorretrato, na verdade, uma apropriação de uma foto minha, aos 17 anos, tirada de uma carteira de identidade. Isso porque, a meu ver, a história de Valongo faz parte da história de todos os afrodescendentes do Brasil.
C&AL: Além dos retratos, as imagens também trazem carimbos, referências à África, como penas de galinha d´angola, e textos. Por que a palavra “carregado” se repete no ensaio?
EN: Um dos motivos é mostrar que aquelas pessoas, sequestradas na África e trazidas à revelia ao Brasil para trabalhar como escravas, eram tratadas como cargas, como objetos. Mas eu também quis falar sobre os navios negreiros contemporâneos, como os trens suburbanos apinhados de gente pobre, em geral negra, que trabalha no centro, vive nas periferias das grandes cidades e chega a passar três, quatro horas ou mais por dia dentro do transporte público.
C&AL: Você trabalha com câmera analógica. O tempo é um fator importante no seu trabalho?
EN: Totalmente e em vários sentidos: o tempo da memória, o tempo de manipular os negativos para a construção da imagem… No caso de Valongo: Cartas ao mar, isso se reflete até mesmo no papel de algodão utilizado como suporte das imagens. Como após o atentado de 11 de setembro ficou difícil entrar com material químico em vários países, inclusive no Brasil, aproveitei para emulsionar uma boa quantidade de papel durante uma viagem à Holanda, em 2008. Esse papel, obviamente, sofreu a ação dos anos, ganhou manchas, o que acabou reforçando a ideia documental do ensaio. Além disso, não tenho pressa na vida, acho que tudo tem seu tempo, coisa que aprendi nos filmes do [cineasta russo Andrei] Tarkovsky. Não digo que nunca vou trabalhar com câmera digital, mas estou na contramão do imediatismo e do exagero.
C&AL: Há espaço para artistas visuais afrodescendentes na cena das artes no Brasil hoje?
EN: Abertura de fato nunca vi. O que vejo agora é mais gente jovem fazendo o que eu e outros artistas fizemos no passado, chutando as portas para conseguir mostrar o trabalho em espaços majoritariamente brancos. Também noto hoje uma presença maior das mulheres afrodescendentes, como a [fotógrafa pernambucana] Ana Lira, na cena brasileira de artes visuais. Sem contar que se antes os artistas ficavam à mercê de curadores e galerias, atualmente têm maior autonomia graças às redes sociais e também pelo fato de se apropriarem mais das ruas. De qualquer forma, é preciso destacar o trabalho do [curador e artista plástico] Emanoel Araújo à frente do Museu Afro Brasil (São Paulo), que tão bem mapeia a produção de artistas afrodescendentes brasileiros. E também a atuação de Solange Farkas, da Associação Cultural VideoBrasil, que abre o Galpão VB (São Paulo) não apenas para artistas brasileiros afrodescendentes, como para gente da África, Oriente Médio e de outros países da América Latina. Mas, voltando à pergunta, ainda temos uma longa travessia pela frente.
Ana Paula Orlandi é jornalista, escreve sobre cultura e comportamento. Atualmente faz mestrado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.