Conversa com Desali

Levar a galeria de arte para o boteco da periferia

A história de Desali partiu dos quadrinhos e do grafite, passou pela formação em Arte-Educação/Artes Plásticas e segue em um processo constante de ressignificação de lugares, envolvendo protagonistas originalmente alheios ao universo da arte.

Arte-educação
Eu trabalhava em um boteco na avenida Paraná, na região central de Belo Horizonte, vendendo mocotó, e consegui fazer um pré-vestibular. Estudava de dia e trabalhava à noite. Aí descobri que a Escola Guignard oferecia Licenciatura em Artes à tarde, um curso pouco concorrido. Trabalhei em uma ONG para manter minha renda e comecei a dar aulas em áreas de risco das periferias da cidade. Essa foi uma experiência importante, porque eu tinha o retorno das crianças. Toda minha pesquisa em Artes entrou na minha dinâmica de ensino. Eu ensinava o que estava aprendendo… era colar lambe-lambe, fazer pequenos vídeos. Mais adiante, essa experiência entrou no meu trabalho do programa Bolsa Pampulha, quando criei uma galeria na Ocupação Dandara. Ali dei uma série de oficinas de pintura para crianças e as obras foram vendidas em um leilão no Museu de Arte da Pampulha, que se tornou o Museu de Arte Dandara naquele momento. A gente ressignificou o nome, e a comunidade foi até o Museu. Com a grana, as crianças compraram o que quiseram. A arte-educação está integrada a meu trabalho conceitual, está tudo ligado.

Basquiat e Abdias do Nascimento
Eu entro na faculdade, sendo negro, de periferia, e ali não existe uma história da arte negra. É uma ideia europeizada o tempo todo que vão disseminando na sua cabeça. E aí aparece o Basquiat [o pintor afro-estadunidense Jean-Michel Basquiat, 1960-1988], uma referência negra, e você identifica uma familiaridade imediata, a questão da polícia, uma séria de elementos, a presença do corpo negro dentro da pintura. Ele foi uma grande influência para mim, também por ter feito uma série de intervenções no espaço urbano. As pinturas dele têm uma raiva e isso está na minha série Embarque nessa promoção, que é um rolê dos jovens de periferia na noite. São grupos que extravasam diante da polícia, do autoritarismo, das prisões. E tem o Abdias do Nascimento [ator, diretor, dramaturgo, pintor e militante brasileiro, 1914-2011] também que encontrei na época da faculdade, mas sempre em segundo plano. Eles não colocam esses artistas negros no primeiro plano, eles estão no entorno. O Basquiat aparece, porque está no entorno do Andy Warhol, por exemplo. Isso é extremamente desagradável.

Palavra
Uma influência importante para mim foi a literatura, o Concretismo, a poesia concreta, a relação da palavra com a matemática. Coloco nas minhas pinturas coisas que parecem um diário pessoal da minha vida, misturando com frases de livros, frases quebradas, palavras em relação com a imagem. E isso gera uma reação interessante das pessoas: elas veem a pintura, a pintura é pequena, agradável, e quando chegam mais perto tomam um choque dependendo da palavra. Algumas pinturas têm um relevo tridimensional que leva a pessoa a se deslocar de um lado para o outro. Minha pesquisa está girando em torno disso também: o corpo da pessoa diante dessa imagem, que vai andar, analisar de perto e de longe.

Ironia e mercado
Me pergunto o que seria a imagem do artista diante desses lugares de poder do mercado da arte. Aí uso esse tipo de ironia, essa descrença nesse poder, nesse capital que só absorve, suga. Se for para entrar no jogo, prefiro entrar dessa forma. Estou aí dentro, mas brincando da mesma forma que vocês estão brincando comigo, usando minhas imagens. Cada um tira um proveito desse movimento. A gente acaba alimentando a plataforma das instituições, que por sua vez divulgam o artista. Entrei na onda e meu quadrinho é meio uma brincadeira nesse sentido. Falo do Prêmio Pipa, mas com um ar um pouco irônico. Tento tratar da forma mais honesta possível essa situação de querer estar na rede de artistas, mostrar o meu trabalho nessa plataforma.

Desali.

Tânia Caliari é jornalista. Vive em São Paulo.

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