C&AL: A Djass surge justamente no contexto da descolonização do pensamento português?
BD: Desde a sua fundação, em 2016, a Djass pretende problematizar a descolonização do conhecimento. Nós alicerçámo-nos nos trabalhos investigativos de historiadores, sociólogos e antropólogos que também pensam esta decolonização. Por um lado, a decolonização epistemológica, trazendo o conhecimento produzido por outros autores para pensar como o conhecimento é produzido e como podemos alterar as concepções eurocêntricas vigentes e dominantes e trazer à discussão outras formas de conhecer.
Fomos buscar pensadores negros estadunidenses, africanos, afrodescendentes e o contributo que deram para os movimentos de libertação. Todas estas ideias vão modelando o nosso discurso, vão o influenciando e a forma como nós pensamos o que é necessário fazer para decolonizar o conhecimento em Portugal, para dar centralidade ao racismo e à discriminação racial e para entender que o racismo atravessa as diferentes dimensões da nossa vida coletiva com impacto na vida das negras e negros, mas também nas ideias hegemónicas da sociedade majoritária.
C&AL: Vocês defendem a inclusão da contribuição dos povos africanos nos currículos escolares. Pretende-se, com isso, resgatar a história da arte do continente africano?
BD: Em Portugal, os manuais escolares continuam a veicular uma visão eurocêntrica do conhecimento, que invisibiliza a diversidade e riqueza das culturas africanas ou retrata-as de forma estereotipada ou subalternizante. É necessário desmontar esta visão, inscrevendo nos currículos e manuais escolares o contributo das civilizações africanas para o desenvolvimento científico, tecnológico, económico, social e cultural da Humanidade. O Centro Interpretativo – parte do Memorial – será também fundamental para a afirmação deste pensamento decolonial. Queremos olhar os contributos das civilizações africanas para o conhecimento, para a tecnologia, para o desenvolvimento social, de modo a poder disputar e confrontar a narrativa que trata essas civilizações e essas culturas como sendo atrasadas, incivilizadas, primitivas e que estabelece uma hierarquia que qualifica essas civilizações, sempre em comparação à civilização europeia. Queremos combater o eurocentrismo para trazer esta informação muito importante para compor esta história incompleta que é contada sobre estas civilizações, sobre estas culturas. Planeamos para o Centro Interpretativo uma programação regular, que irá contar com a colaboração de curadores de arte que tenham reflexão neste pensamento decolonial e pós-colonial, mas também que têm conhecimentos sobre o que foram as diferentes manifestações culturais das diversas civilizações africanas durante todo esse período histórico – durante o contato com o colonialismo, pré-coloniais e pós-coloniais.
Vamos contar também com a participação das comunidades. Queremos criar uma museologia comunitária onde a curadoria das exposições seja feita em parceria e articulação com associações de base local e o movimento social afrodescendente, de modo a construir um diálogo fluido com as comunidades, mas também uma narrativa robusta que confronte a narrativa hegemónica nacional, já que estas comunidades são sempre apresentadas como subalternas na produção de conhecimento e queremos disputar esta narrativa. Além disso, queremos estabelecer uma articulação entre diferentes equipamentos que existam nas cidades europeias a tratar dos mesmos temas, como os da memória e da história colonial, da memória das populações africanas e afrodescendentes nos países europeus e na memória também dos afro-europeus. É importante pensar a Europa como um espaço plural, com múltiplas culturas.
Beatriz Dias é uma mulher negra portuguesa. Nasceu em Dakar, no Senegal, em 1971, e reside em Lisboa, Portugal. É professora de Biologia e Geologia no ensino básico e secundário desde 1994. Ativista antirracista e fundadora da Djass – Associação de Afrodescendentes. Militante e dirigente do Bloco de Esquerda, foi autarca em Lisboa entre 2009 e 2019 e é atualmente deputada à Assembleia da República (parlamento português).
Gisele Navarro Fernandes é brasileira e vive em Lisboa desde 1996. É psicóloga envolvida nos movimentos sociais portugueses. Integra, além da associação antirracista Djass, o Coletivo Andorinha – Frente Democrática Brasileira de Lisboa.