As irmãs e artistas porto-riquenhas Lydela e Michel Nonó estão presentes com suas performances na 10ª Bienal de Berlim. Theresa Sigmund conversou com elas para a Contemporary And (C&).
Las Nietas de Nonó, Foodtopia: Demostration During de Hunting Season (multimedia), 2016. Cortesia das artistas.
Las Nietas de Nonó, Ilustraciones de la mecánica (multimídia), 2016. Cortesia das las artistas.
Las Nietas de Nonó, Manual del bestiario doméstico (teatro), 2014. Foto: Ricardo Alcaraz. Cortesia das artistas.
C&AL: Lydela e Michel, trabalhando juntas como irmãs e artistas no duo chamado Las Nietas de Nonó, vocês transformaram a casa de seu avô em Porto Rico num espaço comunitário. Como vocês passaram a se interessar por arte e como começaram a trabalhar em equipe?
Lydela: Eu me conectei com a arte quando ainda frequentava a escola primária e passava a maior parte do tempo lendo na biblioteca. A bibliotecária da escola sugeriu à minha mãe que me colocasse numa aula de teatro. Minha mãe fez um esforço, mas depois de um tempo não pôde mais pagar as aulas. Continuei participando das atividades de arte da escola e surgiu a oportunidade de estudar balé e dança moderna na Escola de Belas Artes de Carolina, onde fiquei por três anos. Queria ser bailarina, mas não era possível. Sempre fui grande e uma professora disse que teria que emagrecer antes de usar sapatilhas de ponta. Fiquei frustrada e abandonei o balé. Pouco depois, estudei Serviço Social, e só aos 28 anos voltei a considerar a arte como uma forma de me manifestar. Comecei a estudar teatro, mas compreendi que o enfoque acadêmico nas artes me parecia muito rígido, e abandonei o curso. Queria atuar em teatro e cinema e me afastar de personagens estereotipados.
Em 2010, reencontrei minha irmã em Buenos Aires, depois de ficar três anos sem vê-la. Quando ela me disse que precisava de um ator para um personagem num curso de direção teatral, percebi que, mesmo em países diferentes, estávamos na mesma frequência.
Michel: Desde pequena, a literatura me encantava, escrevia romances, contos, poemas, músicas e teatro. Não conseguia parar. Em casa, não tínhamos muitos livros, mas como minha irmã é três anos mais velha, eu também lia os romances que davam a ela nas aulas, repetidamente as mesmas coisas. Aos 22 anos, me cansei da universidade, virei autodidata e economizei dinheiro para viajar. Em Buenos Aires, fiz um curso de direção teatral com Juan Carlos Gené. Para concluir o curso, era preciso montar uma cena de teatro. Justo nesse momento, Lydela estava de visita em Buenos Aires e pedi a ela para interpretar um dos personagens antes de voltar a Porto Rico.
Eu estava escrevendo uma obra com textos de Alejandra Pizarnik sobre o silêncio e a imagem poética do duplo. Tinha muita vontade de colaborar com Lydela e também escrevia o texto pensando nela. Quando acabei de escrever Diálogos, Extracción de la Piedra de Locura (Diálogos, extração da pedra da loucura), enviei o texto a ela. Fui a Porto Rico a fim de montar essa peça e voltar a Buenos Aires, mas acabei ficando. Começamos a trabalhar em torno da casa de nossos avós (“Patio Taller”). Esse processo trouxe a oportunidade de criar uma colaboração entre nós, que nos nutre na qualidade de irmãs, artistas e vizinhas.
C&AL: Em suas performances, vocês utilizam sua história pessoal e a de seus parentes, para, a partir daí, se relacionarem com experiências das comunidades negras marginalizadas de Porto Rico. Por que escolheram essa abordagem autobiográfica?
M: O silêncio nos provocou a refletir sobre outras histórias de um arquipélago colonial com um discurso “oficial” homogeinizado. Quando a avó é expropriada de sua casa, uma prima nasce na prisão, órgãos reprodutores são extraídos de mulheres e as curandeiras são demonizadas, queremos refletir sobre isso em nossa arte. E se, ao mesmo tempo, essas histórias encontram um espelhamento em outros corpos negros, isso nos compele a apresentá-las. Entrar no espaço da performance com uma dramaturgia fragmentada nos permite ter espaço para que seja revelada a informação a que não teríamos acesso por meio da racionalização. Criar a partir de nossas vivências também é buscar estratégias para praticar a decolonização de nossos corpos.
L: Transformar a dor é urgente. Estamos curando as feridas de minhas avós, de minha mãe, das mulheres e dos homens da família. Temos de recuperar o espaço das vozes caladas. Nossa prática inclui o aprofundamento na memória do corpo, em suas células, seus ossos, até que a janela da memória ancestral seja aberta para libertar-nos do trauma. A abordagem autobiográfica me fez ter uma compreensão de mim mesma. Quando desenvolvemos uma cena, não entendo racionalmente por que faço tal gesto ou digo certa frase. Por exemplo, durante o desenvolvimento de Manual del bestiario doméstico (Manual do bestiário doméstico) surgiu a frase: “O mesmo medo de vovó, o mesmo medo de mamãe”, enquanto fechava uma geladeira vazia e velha com uma faca na mão. Nesse momento cênico, conectei-me com minha avó materna, Providencia, que não conheci viva, e em mim despertou mais compaixão e amor pelas mulheres de minha família que lutaram para viver, apesar da escassez e do deslocamento.
C&AL: Vocês tratam frequentemente de sua vizinhança. Performances como Manual del bestiario doméstico, sobre a vida de uma família, são situadas em sua própria casa. Há alguma separação entre sua vida privada e sua prática artística?
L: Os vínculos que herdamos em nosso bairro foram pontos-chave no processo de criação do Manual del bestiario doméstico. Enquanto criávamos, a casa começou a se expressar e contribuir com mais uma camada. Em cada apresentação, havia algum momento inesperado. No meio da peça, um vizinho me chamou da rua para me dar um recado. Atendi meu vizinho enquanto continuava com minha performance, tudo ao mesmo tempo. Tudo faz parte do processo. Apostamos na integração de tudo o que está ao redor das circunstâncias da performance. A casa tem uma sonoridade muito típica do bairro. Não consigo imaginar o Manual del bestiario doméstico em um espaço estéril que pode ser um teatro e que, em Porto Rico, ainda nos colocaria empecilhos à produção, com uma burocracia avassaladora. Não consigo imaginar uma prática artística separada da vida cotidiana.
C&AL: Na sua prática, vocês investigam muitos problemas das comunidades negras de Porto Rico. Qua é a sensação de apresentar seu trabalho em Berlim como artistas negras?
L: Na nossa comunidade, apoiamos atos contra o fechamento das escolas e em prol da recuperação de nosso bairro, que foi afetado pelo furacão Maria. Nosso bairro luta para recuperar a escola primária onde mais de três gerações estudaram e que o governo decidiu fechar em maio de 2017. Isso é um grande problema para uma comunidade negra que pertence à classe trabalhadora e só conta com as calçadas para caminhar, na ausência de um transporte público eficiente. Esses atos provocam o deslocamento de famílias, que agora se veem obrigadas a emigrar para os Estados Unidos. Na medida em que nossa proposta artística alcança visibilidade e questiona os problemas de nossas comunidades, é onde vemos a importância de estar na Bienal de Berlim.
M: Como parte de nossa pesquisa para Ilustraciones de la mecánica (Ilustrações da mecânica) em Berlim, fizemos contatos com ativistas e historiadoras afro-alemãs. Quando falamos a partir de nossa realidade como artistas negras queer em um sistema colonial, não permanecemos num contexto isolado, mas descobrimos relações com processos de exclusão e violência de corpos negros no mundo. As múltiplas relações que temos cultivado em Berlim no contexto de nossa pesquisa têm sido ótimas e estamos gratas pelo próprio processo.
C&AL: Vocês compartilhariam conosco o conceito de sua contribuição para a 10ª Bienal de Berlim?
M: Desde 2016, coletamos informações sobre o complexo médico industrial: a violência obstétrica e a demonização das curandeiras que se materializou na peça Ilustraciones de la mecánica. As ilustrações se alimentaram de apresentações no Haiti, em Cuba e em Chicago. Nesta Bienal de Berlim, apresentamos uma instalação multimídia que reflete a respeito dos corpos negros submetidos a experimentos clínicos em hospitais, escolas e prisões. A instalação continuará a ser processada durante toda a Bienal.
Lydela: O que nos entusiasma são processos longos e abrangentes, os espaços incomuns e um grupo pequeno de espectadores, a fim de gerar conexões mais íntimas. Penso num teatro vivo e, para manter isso, é preciso continuar criando a todo momento, sentir a nós mesmas, sentir as pessoas, deixar que o espaço fale conosco. Que não exista separação entre ator e espectador e que se crie um espaço em que sejamos ao mesmo tempo atores e testemunhas. Um laboratório em tempo real.
Theresa Sigmund, autora da entrevista, é pesquisadora freelancer na área de cultura. É editora/coordenadora da Revista Contemporary And (C&). Vive e trabalha em Berlim.
Traduzido do espanhol por Renata Ribeiro da Silva.