O artista porto-riquenho Tony Cruz Pabón examina e encena o gênero musical e as capas de álbuns de salsa como referências culturais caribenhas e pontos de encontro de diversas manifestações estéticas e sociais. Cruz Pabón conversou com o artista porto-riquenho Pablo Guardiola sobre seu trabalho.
Tony Cruz Pabón, de La llave / La clave. Cortesia do artista.
C&AL: Sua prática está ancorada no desenho, que implica em se concentrar no ato de olhar com cuidado, prolongadamente. Seu projeto La llave / La clave quer precisamente prestar atenção e ler os múltiplos componentes desse mundo que chamamos de “salsa”. Conte-nos um pouco sobre como esse projeto foi sendo desenvolvido.
Tony Cruz Pabón: La llave / La clave começa como uma investigação que tende a tomar formas plásticas, já que parto do olhar como artista. Parece ser outra coisa, diferente dos meus desenhos, mas está em diálogo com o restante dos meus projetos, como os “desenhos das nuvens”, que contêm uma playlist de música.
Há vários anos comecei a guardar imagens de capas de álbuns de salsa e dos gêneros musicais que a antecederam, principalmente entre as décadas de 1950 e 1980. Esse impulso começou como um prazer estético, a partir do qual comecei a ver referências ao mundo da arte. A partir daí, comecei a mostrá-las para amigos e alunos – naquela época eu ainda era professor na Escola de Artes Plásticas e Design de Porto Rico –, e essas apresentações informais acabaram agrupando esse conteúdo no formato de uma palestra. Simultaneamente à análise das capas, faço o mesmo com a música. A abordagem eclética é a mesma, tanto na música quanto na imagem.
La Llave / La clave teve várias manifestações, como palestras, vídeos, escultura e diferentes tipos de publicações. E todas estão em diálogo umas com as outras, como se vê na exposição no Museu de Arte Contemporânea de Porto Rico.
C&AL: Essa combinação é bem explícita na escultura.
TCP: Sim, esse móvel é uma coleção de discos, que fui adquirindo aos poucos. E, para a publicação, fiz os envelopes que contêm os álbuns com uma versão dos tópicos da minha pesquisa e da palestra. Esse trabalho oferece ao público a possibilidade de criar uma playlist analógica e ao vivo.
Tony Cruz Pabón, de La llave / La clave. Foto: María Laura Benavente. Cortesia do artista.
C&AL: Quais são os temas da publicação?
TCP: Religião e sincretismo afro-caribenho. Aqui a imagem se converte em um recipiente, e no caso das capas vejo o mesmo: o conteúdo original é esvaziado e outros são aplicados no lugar dele. São camadas codificadas, ou interconexões. Isso também acontece o tempo todo com a música, onde ritmos se trocam, se complementam, como nas letras das músicas de salsa a gente vai do bairro de Nova York à zona rural de Porto Rico, à praia, se trocam tempos históricos, referências religiosas, e assim por diante.
Há um álbum de Maelo [o cantor porto-riquenho Ismael Rivera] com a orquestra de Rafael Cortijo, chamado Con todos los hierros. Na capa você vê ambos os músicos por trás de um monte de ferramentas de metal, como serras, picaretas, pás, martelos, e o que vejo ali é o pote de Ogun [divindade da religião Yorubá, padroeiro dos ferreiros, das guerras e da tecnologia] com todos os seus metais, seus ferros. Há isso, e também o fato de que Maelo era um carpinteiro. Então, todas essas referências convergem para essa imagem. Dentro dessa ideia de sincretismo, há também a incorporação de referências das contraculturas da época. Vemos como elementos da psicodelia, da pop art e da reafirmação da cultura negra estadunidense se misturam com reafirmações afro-caribenhas.
A mim interessa a maneira como se constroem essas imagens e canções, que são representações da nossa modernidade particular. Dentro do contexto dessa época há muitas alusões às viagens espaciais e à Lua. Leio essa viagem como uma metáfora em geral. Um elemento-chave são as referências à história da arte, especificamente às vanguardas históricas. Meus pais e eu tivemos o primeiro contato com Man Ray através da versão na capa de um disco de Bobby Valentíne.
Tony Cruz Pabón, de La llave / La clave, capa do disco “Musical Seduction”, de Bobby Valentín. Cortesia do artista.
C&AL: Falemos um pouco do impacto da salsa em Puerto Rico.
TCP: A salsa, e a música em geral, é nossa manifestação cultural mais poderosa. Ela influencia todo o pensamento e a estética de Porto Rico. É realmente o maquinário por trás da maneira como operamos. Como mencionei anteriormente, é aí que se manifesta a nossa própria modernidade.
C&AL: Nova York é chave para a salsa, pois foi ali que ela surgiu nos anos 1970, mas em Porto Rico foi uma revolução.
TCP: Fora de Porto Rico você tem a sensação de que a gravadora estadunidense e a orquestra Fania foram tudo para a salsa, e essas instituições são associadas quase com exclusividade como único catalisador do movimento. Não podemos negar o impacto do selo, mas definitivamente a salsa é mais do que isso. Ligadas à Fania, me interessam muito as figuras de Izzy Sanabria e Jorge Vargas. Eles criaram na década de 1970 uma agência, a partir da qual desenvolveram as imagens de muitos desses músicos. Música e estética estavam em diálogo, e eles criaram imagens que estavam em comunicação com o que se passava na cidade de Nova York.
Outra coisa importante é que a salsa não é um ritmo, mas a maneira como, naquela década, foram nomeados muitos ritmos caribenhos. E isso também estava acontecendo com os outros elementos em torno da música.
C&AL: Há muitos anos você e eu compartilhamos interesses em torno do Caribe e entendemos nossa prática artística em Porto Rico como uma prática caribenha. Como você vê a cena artística caribenha?
Infelizmente não a vejo, ou não a vemos como gostaríamos. Queremos interagir, mas isso não acontece. No Caribe, nossas respectivas realidades políticas tornam quase impossível que nos falemos. No entanto, as trocas são mais evidentes na música, embora sempre haja esforços para que aconteçam em outros campos, como arte, literatura, dança ou teatro.
E, no entanto, há pontos de convergência. Apesar de trabalhar em contextos semelhantes, mas diferentes, vejo a ideia do rastro se manifestando em muitas obras de arte feitas no Caribe ou por artistas da região, mas tudo ainda engatinha na forma como produzimos arte.
Tony Cruz Pabón, Nube, 2013-2014. Foto: Alan Dimmick. Cortesia do artista.
C&AL: Em que você trabalha atualmente?
TCP: Como mencionei no início, minha prática parte do desenho. E agora mesmo estou trabalhando em uma série de objetos/desenhos, aos quais aplico camadas de grafite ou uso grafite como material, tratando-o como um objeto a mais. São estruturas frágeis e instáveis. Esses exercícios, em conjunto, formam um desenho efêmero no espaço. Assim como em La llave / La clave, esses trabalhos precisam de tempo e requerem que se preste atenção às suas sutilezas.
Tony Cruz Pabón nasceu em Porto Rico em 1977 e ainda vive e trabalha na ilha. Estudou na Escola de Artes Plásticas de Porto Rico e fez um doutorado na Universidade de Castilla La Mancha, na Espanha. Em 2009 colaborou com a criação de Beta-Local, uma organização dedicada a promover as artes e o diálogo crítico em San Juan, Porto Rico. Seu trabalho foi exposto em galerias ao redor do mundo: Glasgow, São Paulo, Londres, Bogotá, assim como na X Bienal de Berlim, em 2018.
Pablo Guardiola vive e trabalha como artista em San Juan. Estudou na ilha e nos Estados Unidos. Seu trabalho faz referência à linguagem poética cotidiana e ao poder do contexto na criação artística. É codiretor de Beta-Local.
Tradução: Cláudio Andrade