Afroindígena

Keila Sankofa: ficcionalizando sobre as lacunas do passado

Keila Sankofa adota o símbolo africano Sankofa significando “volte e pegue” para explorar a construção do tempo-espaço afroindígena de Manaus, desafiando o apagamento cultural. Seu trabalho inclui performances, filmes e fotografias, destacando figuras negras importantes na história da cidade e resgatando identidades negras e indígenas.

Em Vênus de Dois Atos, a escritora Saidiya Hartman questiona: “Como a narrativa pode encarnar a vida em palavras e, ao mesmo tempo, respeitar o que não podemos conhecer?” Pode-se dizer que Alexandrina – Um relâmpago (2022), um curta-metragem que teve passagem por diversos festivais de cinema, pode exemplificar a resposta para a pergunta de Hartman. Nele, a artista utiliza seu próprio corpo para nomear a história de uma pessoa negra livre, naturalista, nascida em Tefé, interior do estado do Amazonas e que participa de uma expedição que resulta em mais de 200 retratos da população africana do Rio de Janeiro e da população negra e indígena de Manaus, no século XIX, no auge das teorias raciais, no qual a expedição se orientava. Através de texto e performance, Sankofa propõe uma recusa ao que não foi circunscrito à história de Alexandrina e propõe outra estória que comporte a dimensão de sua presença naquele território. O que ela faz, então, é estabelecer um contato direto com outra pergunta de Hartman: “Pode a beleza fornecer um antídoto à desonra, e o amor uma maneira de ‘exumar gritos enterrados’ e reanimar os mortos?”

Ao olhar para trás, Sankofa encontra vestígios de fragmentos sobre um país que não reconhece seu passado. E assim como o ideograma africano, ela retoma parte do que é conhecido e fabula sobre aquilo que não se pode conhecer. No início do curta-metragem, somos apresentados a alguns lampejos de quem possa ter sido Alexandrina. Keila desloca a experiência da negação e fragmentação ao utilizar seu próprio corpo-território como um caminho de reconstrução dessa história, oferecendo uma reparação da violência que é ter nome, sobrenome, rosto e a experiência vivida apagada. Nas palavras da artista: “Tudo pode ser tirado, negado, roubado. Mas o que me nutre é saber que a gente sempre volta.” Visitando o passado sem reiterar a violência. E retorna subvertendo as acepções de um mundo que impõe as suas permanências no tempo-espaço, produzindo – a partir de imagens, instalações e do próprio corpo – outras acepções de vida dialogando com a espiral do tempo.

A recriação histórica no trabalho de Keila Sankofa faz parte de um processo de deslocamento dos regimes de visibilidade que artistas negros, sobretudo na produção de imagens, têm proposto nos últimos anos, ficcionalizando sobre as lacunas do passado. Na sua obra Óculos de Okotô (2022-2024), série fotográfica e performance, que a artista nomeia como “arquefato arqueológico do agora”, Keila posiciona lentes de búzios sob um óculos com o intuito de enxergar a vida na perspectiva ancestral, conectando saberes negros diaspóricos e possibilitando uma partilha do sensível entre os mundos – naqueles em que existimos e aqueles que deixaram de existir.

Keila Sankofa estimula a percepção do encanto ao deslocar a realidade de suas produções e ainda assim, tê-la como início, meio e fim, seja nos rostos que encontra nas ruas, aqueles que não encontra nos livros de história, seja no ônibus que se torna galeria, no bem-viver da natureza. E é ela que, simbolizada no vermelho e os tons terrosos marcados em sua produção dão indícios que, para além das violências colonialistas sob um solo amefricano, há outros modos de existência onde podemos assentar.

* A historiadora Lélia González refere-se à formação histórico-cultural da América Latina considerando os saberes das populações negro-africanas e ameríndias.

Keila Sankofa é artista visual e cineasta, gestora do grupo Picolé de Massa – Da Várzea das Artes.

Kariny Martins é curadora, roteirista e pesquisadora. Autora do livro Ficção Especulativa no Cinema Negro Brasileiro (2023).

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