O antropólogo indiano e professor da New York University, Arjun Appadurai, alerta que tanto a ideia de uma “Teoria do Sul”, quanto o termo “descolonização”, empregados fora de um contexto histórico, podem resvalar facilmente em clichês.
Arjun Appadurai, Modernity At Large: Cultural Dimensions of Globalization, 1996. Cortesia: Fondo de Cultura Económica.
Quando você deu uma palestra na JWTC (Johannesburg Workshop in Theory and Criticism) – uma conferência sobre “A Teoria do Sul” –, disse provocativamente que questionava a existência de uma teoria do Sul e estaria mais propenso a acreditar na existência de um “Sul da teoria”. O que quis dizer com isso? O senhor continuaria a afirmar isso?
AA: Minha intenção foi fazer uma provocação, uma vez que a ideia de “teoria do Sul” já estava arriscando virar um clichê. Quis sugerir que lugares e espaços eram importantes na geografia do conhecimento, mas que era mais importante desestabilizar a ideia de teoria, olhando para ela a partir de pontos de vista não familiares, alguns dos quais poderiam ser geográficos, mas outros poderiam ser profissionais, geracionais ou ideológicos. A ideia de ir ao Sul da teoria também lança a questão do status epistemológico de distinções como teoria/prática, teoria/observação, teoria/dados etc.
Como o Sul não é definido apenas geograficamente, mas também implica muitos outros significados, seria interessante ouvir o que ele implica para o senhor pessoalmente, e também em sua pesquisa.
AA: Tendo crescido na Índia nos anos 1950 e 1960, minha primeira sensação de Sul estava vinculada ao mundo em decolonização e girava em torno do Oeste e do Não-Oeste. Mais tarde, percebi que a questão relevante era: ricos versus pobres. Isto é, o Norte contra o Sul, uma distinção que colocou a América Latina mais claramente na história de decolonização e dependência. Mais tarde, comecei a ver que havia um Leste dentro de todo Oeste (minorias e oposições tradicionais dentro do ambiente dominante) e um Sul dentro de todo Norte, como vi em cidades como Filadélfia e Chicago, com enormes guetos negros que vi ali pela primeira vez. Através dessa série de passos, comecei a pensar que a posicionalidade da teoria é mais política e menos geográfica.
Acho que você concordaria com o fato de que os poderes do mundo estão em deslocamento. Brexit, Trump, populismo de direita na Europa, a posição da China e da Rússia etc. são indicadores disso. Qual sua opinião quando se trata do papel que o “Sul” pode assumir nas próximas décadas e de se a Europa terá uma parte nisso?
AA: Acredito que o “Sul geográfico” está alterando seu equilíbrio e que a Índia e a China serão os lugares mais importantes na definição das relações entre autoritarismo, crescimento rápido e populismo. A Europa exerce um papel vital nesse processo, estabelecendo um equilíbrio entre as reivindicações opostas da China e dos Estados Unidos como rivais pelo domínio global, e entre a Índia e a China como competidores pelo domínio econômico na Ásia. Ela pode fazer isso através da União Europeia, através de empreendimentos cívicos como o Goethe-Institut e servindo como exemplo de um futuro real para a política democrática. Isso só poderá ser feito se a Europa enxergar os problemas do mundo e seus próprios problemas como duas faces da mesma moeda.
Em todos os contextos da globalização, ouve-se a expressão decolonização. Para onde leva a decolonização, ou será que ela é algo que só existe como uma construção teórica que precisa ser desconstruída novamente?
AA: Sim, temo que a decolonização tenha se tornado uma categoria muito frouxa e seja usada atualmente para todos os tipos de movimentos, impulsos e aspirações, muitos dos quais não têm nada a ver com as colônias ou o colonialismo reais. Prefiro usar o termo decolonização para me referir ao movimento específico a partir do qual muitos países da Ásia, África e Oriente Médio conseguiram sua independência nos anos 1940 e 1950. O caso da América Latina é interessante, mas ocorreu mais de um século antes e aconteceu em relação com o capitalismo pré-industrial. Mesmo assim, é o primeiro processo de decolonização verdadeiro de que temos real conhecimento. Interesso-me por todos esses casos, mas não pela tendência atual de se usar indiscriminadamente palavras como “decolonial” sem referências a casos históricos específicos.
O que é o seu Sul?
AA: Meu Sul é o lugar onde populações marginalizadas encontram-se com teorias marginalizantes e sofrem sob seu domínio. O “Sul” pode estar em qualquer lugar e precisa de intervenções em qualquer um desses lugares.
Arjun Appadurai, Antropólogo sociocultural, Índia/ USA, é professor da cadeira Goddard de Mídia, Cultura e Comunicação da Universidade de Nova York, onde também é Senior Fellow no Instituto de Conhecimento Público. Em 2016/2017, é professor visitante do Instituto de Etnologia Europeia da Universidade Humboldt, em Berlim. Appadurai publicou vários livros de referência na área de estudos sobre a globalização. Recentemente publicou “Banking on Words. The Failure of Language in the Age of Derivative Finance” (2015).
Katharina von Ruckteschell-Katte estudou História da Arte, Germanística e Literatura Comparada. É diretora-executiva do Goethe-Institut São Paulo e diretora regional para a América do Sul desde 2013.
Esta entrevista foi originalmente publicada no site do projeto Episódios do Sul, conduzido pelo Goethe-Institut no Brasil.
Traduzido do inglês por Renata Ribeiro da Silva.