Utilizando recursos como modelagem em software 3D e realidade aumentada em formatos de vídeo-ensaios, a artista Vitória Cribb, do Rio de Janeiro, vem se destacando entre a nova geração da arte digital ao refletir sobre temas como vigilância e processos automatizados de máquinas, ao mesmo tempo que investiga a relação entre corpos negros e extrativismo digital.
VIGILANTE EXTENDED, 2022, Instalação audiovisual: Curta-metragem animado digital + Impressão digital sob papel de parede; Brasil; 1920x1080; 5 minutos e 40 segundos, Cor; Som Estéreo.
Não é simples traduzir o conceito de vigilância atualmente. Diferente de outros sistemas de controle reais ou fictícios inventados no último século, no mundo pós-digital não existe uma figura centralizada que acompanha nossas escolhas e comportamentos on-line. Essencialmente, não é possível ver ou interagir com o que tanto nos vigia.
Em Vigilante_extend (2022), Vitória Cribb personaliza a “Vigilante” como um avatar que assume diversas formas ao ver e ouvir os outros através das telas – uma mulher rodeada por olhos e orelhas gigantes, enquanto seu globo ocular é ocupado apenas por uma superfície oca e espelhada. O vídeo foi apresentado na exposição Who Tells a Tale Adds a Tail (2022), no museu de Denver, e incorporado ao acervo da instituição. Até fevereiro do ano que vem, Vitória Cribb participa também da 22a Bienal Sesc_Videobrasil com um trabalho comissionado para a mostra.
VIGILANTE EXTENDED, 2022. Instalação audiovisual: Curta-metragem animado digital + Impressão digital sob papel de parede; Brasil; 1920x1080; 5 minutos e 40 segundos, Cor; Som Estéreo.
C& América Latina: Queria começar falando um pouco sobre o Prompt de Comando (2019). Qual foi o ponto de partida para o desenvolvimento daquela linguagem, usando o sistema do computador?
Vitória Cribb: Esse trabalho foi meu primeiro filme no formato de vídeo-ensaio. Até então, eu já tinha feito muitas experimentações visuais com 3D, mas esse foi o primeiro onde coloquei propriamente uma narrativa em tom pessoal. E a ideia era justamente enfatizar esse diálogo com a máquina. Eu tinha escrito primeiro o texto à mão e fui passando para o prompt de comando, o comando central do computador que a gente usa normalmente para corrigir erros do sistema. E gravei a tela enquanto eu digitava, como se estivesse comandando meu computador com aquele texto que escrevi. O ponto de partida foi uma reflexão com a minha relação com as tecnologias. Faço uma analogia entre o que se espera de uma mulher negra, vista como um meio para servir e gerar lucros, e a máquina em si, que ali faz essa função para mim. São questões que me atravessam a vida, toda vida, assim como minha relação com esses aparatos digitais. E acontece uma jogada de espelho, de me identificar com aquela máquina que é muito semelhante com o lugar que a sociedade espera que eu ocupe – o de servir, de gerar resultado e lucro, e nunca ser a detentora em si do resultado final. Quanto ao formato, minha intenção era trazer uma estética do interior da máquina, o que está por trás desse computador que a gente não olha normalmente.
C& AL: Você usa também essa linguagem do vídeo-ensaio, com um texto em primeira pessoa conduzindo a narrativa. Ao mesmo tempo, a parte visual é essencial, e pelo que falamos é algo que acontece em um segundo momento. Pode contar um pouco sobre esse processo?
VB: Sim, meu trabalho tem sempre esse primeiro momento em que eu parto do texto. Só depois que entra a parte visual, em que começo a pensar no design de personagens, direção de arte, qual vai ser a cor, etc. Depois, quando tudo isso está mais bem definido, sempre trabalho com dois produtores sonoros com quem eu consigo compartilhar ideias mais subjetivas do que quero passar. Por último, eu também faço a narração do filme.
C&AL: Vendo seus vídeos na sequência – Prompt de Comando (2019), @Ilusão (2020) e Vigilante_extend (2022) e Undercover agent for the Truth (2022) – é possível notar um encadeamento de ideias entre eles, como se fosse uma narrativa única e um argumento que foi se consolidando. Como, por exemplo, nesse último vídeo sobre a Tina Turner, em que você personifica a figura do Vigilante criado no filme anterior. Como se dá esse processo?
VC: Tenho um pouco esse lado de olhar para o trabalho anterior e pensar em como quero evoluir, o que posso fazer diferente. Por exemplo: o @Ilusão tem uma cor forte, saturada mas depois disso quis explorar uma estética acinzentada, um pouco mais triste. De certa forma, é uma tentativa de representar esse cyber espaço tentando fugir dos clichês dessa linguagem. E buscando me colocar como alguém do Brasil, pensando que a representação de um cyberspace daqui precisa ter mais ruído. No novo trabalho que apresento na Bienal do Sesc_VideoBrasil, tentei criar outras formas para a personagem. Se nos filmes anteriores elas eram muito monumentais, nesse quis criar uma imagem um pouco mais frágil.
Sobre o trabalho da Tina Turner, parti das minhas representações visuais em 3D, com os avatares pensando em criar um personagem dela em dois momentos. Uma é a Tina rodeada por olhos, a Tina pública – que é uma diva, sensual, uma mulher linda. E o outro momento é quando ela está no controle desse olhar, quando passa a controlar a narrativa dela.
C& AL: Você fala bastante sobre sua formação na cultura gamer/geek no início da sua adolescência. Como essas referências te levaram para o universo das artes visuais?
VC: Eu nasci no final dos anos 1990, uma época que o game expandiu. Meu pai costumava apresentar jogos de computador para mim e para minha irmã e trazer essas referências. Fui uma adolescente que cresceu vendo videoclipes, esse universo de uma cultura pop sempre me influenciou muito. E a minha geração já cresceu com a internet. Já minha relação com as artes se deu pelo fato de ser uma pessoa criativa desde pequena, e a interseção com as mídias digitais também foi natural por tudo isso ter feito parte da minha vida cotidiana.
C& AL: Embora você pertença a uma geração uma geração que cresceu na era da Web 2.0, nota-se uma visão crítica e um incômodo com o papal das tecnologias em nosso cotidiano, especialmente a internet de plataformas e a extensão nociva da vigilância exercida por esses sistemas. Como é sua relação pessoal com esses meios?
VC: A minha geração é bem crítica no sentido de querer saber o que estou fazendo ali e pensar melhor para onde aquelas informações estão indo. Acho que como a gente vivenciou a Web 2.0 ainda criança, deu para acompanhar os jovens usando aquilo desenfreadamente e desenvolver um cuidado um pouco maior. A minha relação com esses meios, claro, é permeada por muitas críticas. Eu faço uso dessas plataformas, mas acho que rede social prejudica muito a saúde mental, então eu evito usar todo dia. O que tem sido cada vez mais comum em pessoas da minha idade ou mais novas, que hoje preferem plataformas mais anônimas. E isso é mais saudável. Então eu tenho um certo cuidado também pela questão do uso dos dados pois temos aceitado termos que a gente mal lê.
Vitória Cribb (1996) é artista visual. Filha de pai haitiano e mãe brasileira, ela utiliza o ambiente digital como forma de expor suas reflexões ao investigar o comportamento social diante do desenvolvimento das novas tecnologias de informação.
Nathalia Lavigne é pesquisadora, jornalista e curadora. É pós-doutoranda no MACUSP e doutora pela Escola de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAUUSP).