Embora a temática racial seja uma constante na obra do artista, morto precocemente no dia 20 de maio de 2017, é redutor olhar para a obra de Sidney Amaral apenas sob esse ângulo.
Incômodo, Sidney Amaral, 2014. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação de Cleusa de Campos Garfinkel, 2015 Foto: Isabella Matheus
Jovem artista paulistano, cuja obra começou a aparecer há pouco mais de uma década na cena da arte contemporânea afrobrasileira, Sidney Amaral, que morreu aos 44 anos, deixa um legado para a história desse segmento da arte brasileira, mas também contribui para a arte contemporânea como um todo – arte essa para a qual os artistas negros, até poucos anos atrás, não existiam (1). Além de sua abordagem singular da temática étnico-racial, Amaral contemplou muitos outros assuntos que animaram sua produção. Desta forma, trilhou “muitos caminhos” e seu repertório técnico-expressivo passa por instalações, apropriações, esculturas em bronze, mármore e outros materiais, pintura a óleo, acrílica, aquarela e desenho (2).
Seus trabalhos começaram a despertar o interesse de colecionadores, foram adquiridos por instituições públicas (3) e continuam a atrair um público negro instigado pelos temas presentes em sua poética crítica. Isso ocorre, por exemplo, quando ele aborda a afetividade do homem negro. São eloquentes nesse ponto aquarelas como: Enfim encontrei você! (As afinidades eletivas) (2014); Estudos da obra Imolação (2009/2014); Banzo ou a anatomia de um homem só (2014); Bem me quer mal me quer (2012). Adicionalmente, em seus bronzes coloridos com pintura eletrostática, esses sentimentos aparecem em Trauma (2014), no qual o sangue que parou de escorrer é uma metáfora da mágoa que retorna do passado para assombrar o presente e jamais dissipa a dor (4). Em Entre iguais (Todo Amor Humano) (2014), Amaral propõe a união de dois corações, o que sugere haver um metabolismo próprio à experiência amorosa. Esses e outros trabalhos pensam o corpo de maneira diversa, elaborando um trajeto que perpassa o racismo estrutural da sociedade brasileira, dá forma a certos afetos e se espraia com notável liberdade conceitual quando o artista recorre a expedientes surrealistas, seccionando o corpo em muitas partes. Tal gesto dá origem a obras como Complacência (2014), na qual mãos em mármore e resina exprimem atitudes emocionais opostas, mas convivem, ou No limite do possível (2015), quando um dedo em mármore carrara usa uma aliança de espinhos em bronze, apontando para a ambiguidade do enlace matrimonial.
Durante os dois últimos anos de vida do artista, sua obra movimentou-se em exposições significativas e entrou para acervos públicos e privados (5). Contemplado pelo extinto Prêmio Funarte de Arte Negra, do Ministério da Cultura (6), Amaral fez a individual O banzo, o amor e a cozinha de casa, assinada pelo curador Claudinei Roberto Silva. Os três assuntos do título desta mostra são ferramentas seguras para uma incursão crítica por sua poética multicafetada. Entre 2003 e 2016, o governo federal do Partido dos Trabalhadores foi o que melhor respondeu às demandas dos diversos movimentos sociais negros que, ao longo do século 20, vêm lutando pela integração social deste segmento à sociedade brasileira (7). Na mostra acima citada, de feitio retrospectivo, foi possível constatar a diversidade das propostas do artista e os meios técnicos empregados. Em cada um desses meios, ele aprofundou seu conhecimento, encontrando o ponto preciso entre o tema e seu tratamento material. Curiosamente não usou a fotografia e o vídeo, mas imagens fotográficas dos séculos 19 e 20 estão presentes em obras como Incômodo (2014). Atento ao momento atual, Amaral transformou uma cena do filme Cristo Rey (8) na obra Mãe Preta, ou fúria de Iansã (2014), uma tela de 220×140 cm. A mulher armada com uma faca está prestes a sangrar um policial no pescoço que, com mãos ensanguentadas, aponta o revolver à cabeça de seu filho na parte inferior. Em lugar da rua de uma favela da ilha caribenha, Amaral distribui por toda a tela a cor preta que acentua a tensão entre o Estado e a sociedade civil. Diante da situação, a mãe não vê saída senão pegar uma faca – objeto doméstico usado como ferramenta de guerra (9). O tema da morte do jovem negro ou das condições que levam a essa dramática realidade aparece em outros de seus trabalhos como Imolação (2009/2014) (10). Desde que aboliu juridicamente a escravidão, o Brasil tem verdadeiro ódio a falar de seu racismo. Essa é uma atitude deliberada e um modo pelo qual as elites e as camadas médias vêm lidando com o problema que escolhem imaginar não existir (11).
Embora a temática racial esteja na sua produção como uma constante, é redutor olhar para a obra de Amaral apenas sob esse ângulo. É preciso atenção a seu refinado senso de composição e montagem a partir de elementos cotidianos como bonecas, objetos cortantes, bexigas, chinelos, utensílios de higiene pessoal, espaços domésticos (12). Obras como Gravidade (2011) e Família (2012) voltam-se para o formalismo conceitual, ocorrendo o mesmo em Probabilidade (2009) ou Fecundação (2012), o que nos permite pensar sobre a liberdade crítico-expressiva do artista negro.
Sidney Amaral foi um artista plural, pois além de se interessar por diferentes assuntos e técnicas, manteve suas atividades como professor de escola pública, decidindo diariamente ser quem foi. Sua morte rompe com um percurso vigoroso e fértil, que, entretanto, não termina com ele. O reconhecimento ainda tímido que obteve deixa lições à arte brasileira que, a despeito da desmontagem da democracia, demonstra baixa preocupação política e social.
Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.
1 Sobre a invisibilidade dos artistas contemporâneos negros ver: LOPES, Fabiana. Arte contemporânea no Brasil e as coisas que (não) existem. http://omenelick2ato.com/artes-plasticas/COMO-FALAR-DE-COISAS-QUE-NAO-EXISTEM/ Acesso em 23/08/2017. Sobre a presença negra em uma perspectiva histórica ver: BISPO, Alexandre Araujo e FELINTO, Renata. http://omenelick2ato.com/especial/AFRO-BRAZILIAN-ART/Acesso em 23/08/2017. Sobre a discussão do conceito de arte afrobrasileira ver: SILVA, Renato Araujo da. Arte afro-brasileira, altos e baixos de um conceito. São Paulo: Ferreavox, 2016.
2 ARAUO, Emanoel. “Um cavalheiro de fina estampa”. In: O Amor, o Banzo e a Cozinha da Casa. Ipsis, 2015, p.7.
3 O artista possui obras no Museu Afro-Brasileiro, Salvador Bahia; Museu Afro Brasil, São Paulo; Museo de La Solidaridad Salvador Allende, Chile e Pinacoteca do Estado de São Paulo.
4 Um comentário de tom psicanalítico sobre sua obra pode ser encontrado em: http://www.centralgaleriadearte.com/a_artista/home.php?artista=amaral Acesso em 24/08/2017
5 Já catalogada no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo está a obra Incômodo, 2014, adquirida em 2015. No acervo do Itaú Cultural estão as obras O estrangeiro, 2011 e O trono do rei, ou historia do sanitarismo no Brasil, 2014.
6 A exposição aconteceu de 25 de janeiro a 25 de abril de 2015 no Museu Afro Brasil. ver; SILVA, Claudinei Roberto da. “A sedução do incômodo”. In: Sidney Amaral: O banzo, o amor e a cozinha da casa. Ipsis, 2015, p.9-23.
7 Antes mesmo que se agravasse a atual crise política no Brasil, “setores da sociedade exclusivamente comprometidos com a manutenção de seus próprios privilégios” contestaram o projeto Funarte de Arte Negra, “procurando inclusive interditá-lo judicialmente”. SILVA, 2015, p.9.
8 Filme dirigido pela cineasta dominicana Leticia Tonos Paniagua, 2013, 96 minutos.
9 O tema da reação à violência policial aparece em trabalhos como: Davi, 2ª versão (2015); Encontro (2015); Discóbolo (2015); Sem título (2015).
10 Para uma análise da temática racial em duas pinturas Imolação (2009/2014) e Gargalheira, quem falará por nós (2014), ver: JUNIOR José Nabor. Meu passado (não) me condena: memória, raça e identidade nas pinturas de Sidney Amaral. Disponível em: http://omenelick2ato.com/artes-plasticas/SIDNEY-AMARAL-MEU-PASSADO-NAO-ME-CONDENA/.
11 Schwartz, Lilia, 2017. Raça, cor e linguagem. In: O racismo e o negro no Brasil: Questões para a Psicanálise. Kon, Noemi, Abud, Cristiane Curi, Silva, Maria Lúcia da (Orgs). 1ªed. São Paulo: Perspectiva, 2017, p.91-120.
12 Ver COSTA, Monica Rodrigues da. A arte é o molde de fazer. Disponível em: https://www.flickr.com/people/sidney_amaral/