Este ano duas instituições no Brasil celebram mais de sete décadas de contribuições artísticas internacionais do artista afro-brasileiro.
Abdias Nascimento, Baía de sangue (Luanda), 1996, Acrílica sobre tela, 80 x 100 cm. Acervo Ipeafro, Rio de Janeiro.
Abdias Nascimento, Máscara ancestral, 1988, Acrílica sobre tela, 80 x 100 cm. Acervo Ipeafro, Rio de Janeiro.
Abdias Nascimento, Cemitério Vudú,1968, guache sobre papel. Coleção Instituto Inhotim.
O ano de 2022 começou com Abdias Nascimento na programação de dois importantes museus do país, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Instituto Inhotim. Com a mostra Primeiro Ato: Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra, o Instituto Inhotim inaugurou, em dezembro de 2021, o projeto Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra, planejado para acontecer em quatro atos ao longo de dois anos, de 2021 a 2023. No MASP, a exposição Abdias Nascimento: um artista panamefricano, curada por Amanda Carneiro e Tomás Toledo, inaugurada em fevereiro, teve como foco a atividade artística de Nascimento, sendo considerada a maior exposição individual do artista até o momento. Com cerca de 61 pinturas divididas em sete núcleos, foram estabelecidas relações entre a produção visual e a intelectual de seu autor, além de apresentar extensas vitrines de documentação relacionada.
Ambas as mostras contaram com o apoio do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) – órgão criado por Abdias Nascimento com Elisa Larkin Nascimento. Mantendo o seu legado, o IPEAFRO guarda o acervo do artista e fomenta ações educativas e de memória das culturas afro-brasileiras. Larkin Nascimento é doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em direito e em ciências sociais pela Universidade do Estado de Nova York, além de autora de obras de referência na área. Ela dirige o IPEAFRO com apoio de Julio Menezes Silva, jornalista e mestrando em História da Arte pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Para Larkin, ter Abdias Nascimento em destaque é compromisso do Instituto, mas só foi possível recentemente, devido ao espaço aberto nos museus, galerias e instituições de arte a partir da atuação de artistas, curadores e movimentos negros.
Com uma trajetória de múltiplas atuações, entre artista, escritor, docente, político, ativista, pesquisador, escritor, dramaturgo, ator, poeta e jornalista, além de ter morado em países, como os Estados Unidos da América e a Nigéria, participado ativamente de eventos relacionados aos movimentos negros nas Américas, África e Europa, Nascimento teve inegável contribuição para as artes. Durante a década de 1940, junto a um grupo de artistas e intelectuais negros, inaugurou o Teatro Experimental do Negro (TEN), projeto que introduziu o protagonismo negro no teatro dramático e na dramaturgia nacional. Nas artes visuais, sua atuação se deu, enquanto artista, colecionador, pesquisador, curador e gestor, com o conhecido projeto do Museu de Arte Negra (MAN), onde reuniu importante acervo para as artes brasileiras. Como artista, realizou densa produção, apoiado, principalmente, no pensamento iorubano e em formas geométricas.
As duas exposições atuais entram para o conjunto de 41 individuais e 11 coletivas de Nascimento, que já passou por importantes museus nacionais e internacionais e em instituições ligadas às comunidades negras, principalmente nos países em que morou. No âmbito internacional, podemos destacar exposições no The Harlem Art Gallery, em Nova York, em 1969; na Galeria da Universidade Howard, em Washington DC, em 1975; no Studio Museum in Harlem, em 1973; na Universidades Yale, em 1969; em Kongi’s Harvest Gallery Museum, em Lagos, Nigéria, em 2013; entre diversos outros.
Já no Brasil, as primeiras exposições foram em 1975. No mesmo ano, esteve na Galeria do Banco Nacional, em São Paulo, e na Galeria Morada, no Rio de Janeiro. Em 1982, ocupou a Galeria Sérgio Milliet, no Rio de Janeiro; em 1988, no centenário da Abolição da Escravatura no Brasil, expôs no Palácio da Cultura, no Prédio Gustavo Capanema, antiga sede do Ministério da Cultura, no Rio de Janeiro. “Essa exposição foi bastante grande. Foi apresentada uma série de pinturas relacionadas aos orixás, ocupando todo o espaço do mezanino, utilizando apenas iluminação natural, com luz reluzindo sob as pinturas de Abdias,” comenta Larkin Nascimento. “Com essa exposição, buscou reafirmar o posicionamento político e o lugar da população negra naquele ano, ligado tanto à abolição da escravidão quanto à Constituinte. Mas, a repercussão disso no mundo das artes foi muito pequena”.
Para Larkin, as exposições nacionais exigiram enormes esforços do IPEAFRO. Segundo ela, foi apenas recentemente que os museus e instituições culturais do país passaram a se interessar pelo legado artístico de Nascimento, que, anteriormente, era reconhecido principalmente pela trajetória de militância e carreira política, o que os museus consideravam distantes dos seus interesses. Ela comenta que “a primeira vez que um museu nos buscou foi em 2019. O Museu de Arte Contemporânea de Niterói nos procurou para fazer uma exposição e um seminário, que foi realizado com artistas e curadores negros. Foi a primeira vez que tivemos um convite assim, com seriedade e com muito respeito. E eu destaco Niterói como orgulho”.
Apesar dessas duas iniciativas, o Inhotim e o MASP são marcados por ambiguidades no que tange à história afro-brasileira. Não é por acaso que a presença das artes negras nas suas programações se revela um interesse recente. Esperamos que eles demonstrem a permanência de um real interesse de mudança, solidificando suas responsabilidades nesse sentido para o futuro.
Tanto Larkin quanto Menezes Silva vêem a mostra Histórias Afro-atlânticas, realizada em 2018, no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, como um marco de mudança na apresentação da produção artística de autoria negra e, especificamente, de Abdias Nascimento no campo das artes. Menezes Silva diz que, “com História Afro-Atlânticas, vimos os museus e curadores conhecendo o lado artístico de Abdias, tornando o nome dele um foco no meio”. Larkin complementa: “foi também a partir do Movimento Black Lives Matter que vimos as coisas mudarem. Esperamos que não seja apenas interesse mercadológico, mas que estejamos realmente firmando esses espaços.”
Durante tal mostra, o IPEAFRO doou para o MASP a obra Okê Oxóssi, de 1970, que desde então está em exibição permanente no Museu, sendo destaque também na atual individual do artista. Para a curadora Amanda Carneiro, essa tela representa o crescimento do artista dentro da instituição, que “se transformou em um trabalho icônico no segundo andar do museu, ensejando aberturas para o projeto Acervo em transformação”, iniciativa que o MASP mantém desde 2018 com o intento de apresentar as novas aquisições e de reorganizar as exposições de acordo com os projetos anuais. Carneiro comenta também que a individual de Abdias integra o projeto Histórias Brasileiras, programada para 2022 no Museu, que conta com uma exposição central, dividida em densos núcleos que abordarão temas ligados às narrativas de artes no Brasil. Em conjunto, haverá mostras individuais, como a de Abdias Nascimento, para aprofundar temáticas, trajetórias ou aspectos visuais de artistas participantes.
Abdias Nascimento, Dois Afros, 1971, acrílica sobre cartão. Coleção Instituto Inhotim.
Para a individual de Nascimento, o foco foi na relação do artista com duas vertentes intelectuais-políticas: o pan-africanismo, do qual o autor cita em diversos de seus textos e pinturas, e seus diálogos com a América Latina, que aqui foram capturados pelo termo cunhado por Lélia Gonzalez: “Améfrica”. Segundo Carneiro, a proposta se conduziu a partir da relação entre os dois, que foram, inclusive, colegas de partido político e candidatos na mesma chapa durante as eleições de 1986. Para ela, recorrer ao neologismo “Pan-amefricano” “foi um modo de integrar tanto o ‘pan-africanismo’, movimento político adotado por Abdias, e por ele também divulgado no Brasil, e a ‘amefricanidade’, de Lélia González. Fazendo assim uma retomada do que há de latino-americano não apenas em Abdias e Lélia, mas também na nossa concepção afro-diaspórica.”
Abdias Nascimento foi um atuante nos movimentos na América Latina. Apenas para citar alguns dos seus envolvimentos com a região, ele participou dos I e II Congresso de Cultura Negra das Américas, realizados na cidade de Cali, Colômbia, e no Panamá, respectivamente. Foi eleito vice-presidente e III Congresso de Cultura Negra das Américas, realizado pelo IPEAFRO na PUC-SP em 1982, foi Patrono do Congresso Continental dos Povos Negros das Américas, foi homenageado pela UNESCO durante o Ano Internacional de Celebração da Luta contra a Escravidão e de sua Abolição, foi reconhecido como contribuidor na prevenção da discriminação racial na América Latina pelo Conselho Nacional de Prevenção da Discriminação do Governo Federal do México, entre outros.
Segundo a pesquisadora e especialista em América Latina, Danielle Almeida, podemos localizar contatos de Abdias Nascimento com movimentos artísticos na região desde a década de 1950. Incluindo a Companhia Teatro Cumanana, do Peru, grupo que a Nicomedes Santa Cruz, irmão da cantora, dramaturga e dançarina Victoria Santa Cruz fundou. Segundo Almeida, em conversa com Octavio Santa Cruz Urquieta, sobrinho de ambos, ele afirmou que Nascimento manteve contato com o tio, Nicomedes Santa Cruz, para trocas de experiências artísticas e também politicas em prol da luta antirracista no Peru e no Brasil. Nascimento não estava preocupado apenas em criar um teatro que pensasse a partir da experiência negra no Brasil, mas de sua forma expandida enquanto parte da América Latina.
Abdias Nascimento, Quarteto ritual nº6, 1971, Acrílica sobre tela, 102 x 152 cm. Acervo Ipeafro, Rio de Janeiro.
Segundo Douglas de Freitas e Deri Andrade, curadores do Inhotim envolvidos no projeto, entender as relações criadas por Nascimento por meio do TEN será o tema do Segundo Ato organizado pelo Inhotim e programado para abrir em junho. “O TEN será apresentado como uma rede de articulações para pensar outros processos nos quais Abdias esteve envolvido, que surgem como meios nos quais Abdias encontra para superar ‘lacunas’, no que tange à representatividade negra, nos meios artísticos da época”, explica Andrade. “Foi a partir do TEN que se desencadeou uma série de ações que Abdias levará ao longo de sua carreira, como o próprio pan-africanismo e o quilombismo, que sempre esteve em diálogo com a América Latina”.
Com a curadoria compartilhada entre Inhotim e IPEAFRO, o programa tem como curadores Elisa Larkin Nascimento e Júlio Menezes Silva, representantes do IPEAFRO, e Deri Andrade e Douglas Freitas, por parte do Inhotim, e contam com o acompanhamento de Julieta González, que desde janeiro de 2022 está à frente da direção artística do Instituto. Segundo González, “o Inhotim já tem uma posição bem definida no âmbito das produções afro-latinoamericanas e cresceu muito nos últimos meses em direção tanto à arte afro-brasileira quanto afro-americana e afro-diaspórica”. Ela destaca também: “estamos ampliando os projetos até 2023, preparando livros, exposições temporárias, debates. E mais do que falar sobre um ‘pós’, o projeto fala sobre um durante. Este ‘durante’ que estamos realizando agora”. Sobre isso, Freitas completa que, “um passo importante também foi a aquisição pelo Inhotim de quatro obras de Abdias Nascimento que estavam no mercado privado e que foram recuperadas para uma coleção institucional”, afirmando, de certo modo, o compromisso de manter resguardado o legado do artista.
As instituições no Brasil levaram décadas para começarem a apreciar o legado de Abdias Nascimento no mundo das artes dentro e fora do país. Não obstante, as contribuições do artista, que faleceu em 2011 com 97 anos de idade, mostram com firmeza que artistas afro-brasileiros irão continuar acreditando em suas visões e criando mundos artísticos onde todas as vozes são ouvidas.
Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2019). É colaboradora de conteúdo da Diáspora Galeria e docente no Departamento de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina.