Com intenção precisa, a coreografia de Pi invoca a vitalidade de pessoas, objetos e de histórias das culturas negras, ao passo que tece narrativas que atravessam tempo e espaço. Nossa editora executiva Marny Garcia Mommertz escreve sobre seus encontros as obras de Ana Pi e com a própria artista.
Ana Pi, The Divine Cypher (O Ciframento Divino), solo show, 2021. Vista de Daniel Nicolaevsky para Na Mata Lab.
Ana Pi, NoirBLUE (AzulNegro), 2018. Cortesia da artista.
Ana Pi, Le Tour Du Monde Des Danses Urbaines (A Volta ao Mundo das Danças Urbanas), 2014. Vista de Pierre Ricci.
Julien Creuzet, Algorithm ocean true blood moves (Algoritmo oceano sangue verdadeiro move), coreografia de Ana Pi. Apresentado como parte da 15ª Bienal de Dakar pela Hartwig Art Foundation em colaboração com Dak'Art e Performa Biennial. Comissionado pela Hartwig Art Foundation e Performa 2023. Foto de Khalifa Hussein para NA MATA LAB©.
Sentada e em um pequeno estúdio em Nova York, Ana Pi (nascida em 1986) move lentamente seu peito para dentro e para fora, batendo nele ritmicamente com uma das mãos. “Algo acontece com a gente, com nosso luto e nossa dor, quando fazemos este movimento”, ela me diz com firmeza em uma videochamada de sua residência no Amant, onde desenvolve a obra ATOMIC JOY. A intimidade desse momento, ocorrido em outubro de 2024, revela uma faceta do processo artístico de Pi: através do movimento, ela transforma o luto individual e coletivo em atos de resistência e alegria, tecendo narrativas que conectam gerações e geografias afrodiaspóricas.
Sobre colaboração e legado intergeracional
O documentário NoirBLUE (2018 – 27’) de Ana Pi começa com a afirmação: “É importante saber que o que eu tô vivendo agora é o futuro que alguém sonhou para mim há muito tempo atrás.” Essa ideia sintetiza o compromisso contínuo da artista com colaborações entre gerações contemporâneas, ancestrais e futuras. Uma de suas colaboradoras e mentoras mais influentes é Katherine Dunham (1909–2006), a dançarina e antropóloga estadunidense que inspirou a fundação da Ailey School em Nova York, em 1958. Embora nunca tenham se encontrado, Pi nitidamente dialoga com os ensinamentos de Dunham, bem como com a sabedoria de outras pessoas que vieram antes dela. Ancestres que Pi acredita terem sido extremamente estratégicos em seus empreendimentos criativos.
“Estou muito decepcionada com o isolamento que podemos experimentar devido à nossa existência na linha do tempo hegemônica”, comenta Pi, aludindo aos sacrifícios intergeracionais que possibilitaram que ela existisse e criasse hoje. “Ou quando dizem que alguém foi o primeiro a fazer isso ou aquilo, especialmente quando sabemos tudo o que foi apagado. Ninguém consegue realizar um trabalho de resistência sozinho.” Em sua reflexão, ela fala de epistemicídio, termo cunhado pela pensadora Sueli Carneiro, que descreve o genocídio de sistemas de conhecimento e de saberes. “Quando você mata conhecimento, mata possibilidades de vida”, explica a artista, com sua voz doce, mas firme e determinada, destacando persistência de saberes ancestrais, mesmo diante dos esforços contínuos da supremacia branca para invisibilizá-los. Em suas obras, Ana Pi reconfigura esses códigos ancestrais que se pensava perdidos devido ao genocídio e ao trauma.
Ana Pi, Choreographing Transmission (Coreografando a Transmissão), 2024. Vista de Marisa Hetzler para AMANT Brooklyn.
Em ATOMIC JOY (2025), Pi está pensando na transmissão de conhecimento para gerações futuras. A peça, que inaugura a Saison France-Brésil,, será apresentada no festival Rencontres chorégraphiques internationales de Seine-Saint-Denis, na França, de 4 a 5 de junho e na Pinacoteca de São Paulo, no Brasil, de 23 a 25 de agosto. Envolvendo em camadas de roupas oito jovens que atuam em batalhas de dança freestyle na Grande Paris, Pi transformará gestos associados ao vocabulário de guerra em uma coreografia voltada à liberdade, ridicularizando intencionalmente o medo generalizado que pesa sobre o tempo presente. Apesar deste tempo, ela pretende mostrar que a alegria é um caminho para a paz e um ato de resistência. “Em 2050, talvez as pessoas se perguntem o que artistas da dança estavam fazendo em 2025. Quero que saibam que eu estava convidando as pessoas a falar sobre a alegria como vibração, resistência e como uma maneira de conceber a paz a partir de uma perspectiva prática”, diz Pi. Ela olha diretamente para sua webcam enquanto elabora sobre os figurinos do grupo de dançarinos, e me diz com firmeza: “Se estão matando a nós e a nossos conhecimentos, quero que haja medo da vitalidade e do movimento que sustentamos.”
Animismo como coreografia e espiritualidade
Pi trata da transmissão de conhecimento e da vitalidade não apenas nas pessoas, mas também nos objetos. Reivindicando cosmovisões que permanecem vibrantes, como o Candomblé no Brasil, ela expande essa consciência animista para os contextos institucionais da arte contemporânea. Um exemplo é a instalação cinética Antena Ia Mbambe (2023), com Taata Kwa Nkisi Mutá Imê, para a qual ela coreografou várias hastes de metal. Em 2023, Julien Creuzet a convidou para colaborar em Zumbi Zumbi Eterno, uma instalação sobre a “zombificação” ou vodu haitiano e o líder quilombola Zumbi dos Palmares. Usando tecnologia de captura de movimento para transpor os movimentos de Pi para versões digitalizadas de estátuas Bakongo que ainda aguardam restituição, Creuzet a encorajou a imaginar como tais estátuas poderiam dançar. A coreografia de Ana Pi permitiu que as entidades reivindicassem a vitalidade apagada por séculos de violência colonial. “Não era eu, e ainda assim as estátuas dançavam”, relembra ela, explicando que o conhecimento não desaparece, mas muda de forma.
Ana Pi com Taata Kwa Nkisi Mutá Imê – ANTENA IA MBAMBE (ANTENA IA MBAMBE), 2023. Mayara Maluceli para NA MATA LAB©.
Em junho de 2024, durante o Holland Festival, em Amsterdã, testemunhei Ana Pi com um robô chamado Perseverance como seu parceiro na performance The Divine Cypher (2021). A obra foi concebida durante o auge da pandemia de COVID-19 e o par se movia por um palco cintilante, com uma parte coberta de açúcar, o que me fez pensar em um planeta, com Pi carregando um galão de água sobre a cabeça. O documentário de Maya Deren, Divine Horsemen: The Living Gods of Haiti, era exibido em um celular.
Quando Pi e eu falamos sobre a vitalidade dos objetos, em outubro, ela enfatizou a tensão entre a rejeição das cosmologias espirituais afrodiaspóricas e a celebração das “conquistas” tecnológicas sob a égide da ciência e colonização. “Vivemos um período durante a pandemia em que não podíamos ir a lugar nenhum, mas a NASA enviou uma máquina [Perseverance] para o espaço, que nos enviou imagens dela vagando por outro planeta”, diz Pi. Ao misturar a consciência espiritual afro e a tecnologia contemporânea, The Divine Cypher desafia essa contradição.
Julien Creuzet, Algorithm ocean true blood moves (Algoritmo oceano sangue verdadeiro move), coreografia de Ana Pi. Apresentado como parte da 15ª Bienal de Dakar pela Hartwig Art Foundation em colaboração com Dak'Art e Performa Biennial. Comissionado pela Hartwig Art Foundation e Performa 2023. Foto de Daniel Nicolaevsky para NA MATA LAB©.
Sobre coreografias de resistência e de luto
As obras de Ana Pi se desenvolvem ao longo do tempo, criando conexões que transcendem a geografia ou a ordem de exibição. A artista entende seu próprio trabalho como um “loop” – um continuum, cuja força motriz é a memória cultural e ancestral. No vídeo Ceci n’est pas une performance (2017), por exemplo, ela vincula o que chama de “danças periféricas”, como dancehall, krump, voguing, hip hop e pantsula, às imagens dos contextos marginalizados de onde essas danças surgiram. Seis anos depois, a obra escultural e performática Algorithm ocean true blood moves (2023), do artista Julien Creuzet, com coreografia de Pi, expandiu esses estilos e seus significados. Situada em um cenário de fundo oceânico e em frente ao vídeo de Zumbi Zumbi Eterno – incluindo as estátuas Bakongo animadas com os movimentos de Pi – sete jovens artistas da dança da Ailey School evocam as inúmeras vidas e os conhecimentos imensuráveis perdidos durante a travessia do Atlântico. Quando Pi me envia imagens da encenação de Algorithm para mil pessoas no encerramento de THE WAKE, a 15ª edição do Dak’Art em 2024, penso em sua força no contexto ancestral e cultural específico de Dakar – e sobre os movimentos, agora fluindo ao contrário, que alimentaram a obra e a levaram de volta às suas origens.
Julien Creuzet, Algorithm ocean true blood moves (Algoritmo oceano sangue verdadeiro move), coreografia de Ana Pi. Apresentado como parte da 15ª Bienal de Dakar pela Hartwig Art Foundation em colaboração com Dak'Art e Performa Biennial. Comissionado pela Hartwig Art Foundation e Performa 2023. Foto de Khalifa Hussein.
Esse estudo da perda e tenacidade está entrelaçado à própria vida de Pi. “Um ponto de virada foi quando meu pai desapareceu em 2018. O nome dele é Julio de Oliveira.” Na época, a carreira de Ana Pi era precária, o que a obrigou a retornar ao palco uma semana após o início dessa tragédia. Dançar danças periféricas ajudou-a a se conectar com sua força vital e serenidade. Ela diz que o trauma poderia tê-la paralisado, transformando-a em pedra, se não fosse por algo mais. Sete anos após o desaparecimento de seu pai, Pi começou um processo de luto, agora atribuindo seu desaparecimento a um assassinato. Recentemente, o caso foi encerrado, com uma investigação sem resultados que pudessem trazer alguma forma de justiça. Ela aprendeu que o movimento “não é sobre ser blasé ou fria, mas sobre se aquecer. Essas [danças] são nossas vidas”, ela diz.
Nossa conversa permaneceu comigo. Sempre que a vi, junto com suas obras, em lugares como São Paulo, Martinica e Amsterdã, fiquei impressionada com a presença e a introspecção que essas experiências exigiam de mim. Enquanto escrevia este artigo e revisava nossa conversa, senti as forças do animismo, da troca intergeracional, da perda, do luto e do conhecimento me envolvendo. Então, sentei-me imóvel. Depois, lentamente, movi meu peito para dentro e para fora, batendo nele com uma das mãos.
Ana Pi é artista da coreografia e da imagem, nascida, criada e nutrida no Brasil. Trabalhando a partir da França, ela navega no mundo por meio das camadas regenerativas e da imaginação radical da diáspora africana. Leia a biografia completa aqui.
Marny Garcia Mommertz é escritora e artista que explora formas experimentais de arquivamento dentro da diáspora e investiga a vida da artista e ativista negra Fasia Jansen, sobrevivente do Holocausto na Alemanha. Ela é managing editor da C&AL.
Tradução: Jess Oliveira