Apesar dos saldos perniciosos do retrocesso político pelo qual passa o país, várias ações vêm acontecendo na cena artística negra brasileira. Depois de terem sido dados alguns passos para gerar políticas públicas para o segmento, o grande e atual desafio é conseguir mantê-las.
Museu Afro Brasil. Foto: Roberta Navas.
O Banzo, O Amor e a Cozinha de Casa, exposição de Sidney Amaral, Museu Afro Brasil, 2015. Foto: João Liberato.
Vista da exposição Histórias Afro-atlânticas no MASP. Foto: Eduardo Ortega.
Durante mais de três décadas, a chamada arte afro-brasileira – ou seja, parte do acervo de obras de artistas negros dos séculos 18 e 19, de pré-modernistas e modernistas (pós-1888 até a década de 1950) e de contemporâneos (da década de 1960 até nossos dias) – esteve ligada à pessoa de Emanoel Araújo, responsável por apresentar esses nomes, democratizar o acesso e salvaguardar suas memórias e feitos artísticos.
A atitude sistemática de valorização por parte de Araújo garantiu que Mestre Valentim, José Teófilo de Jesus, Estevão Silva, os irmãos Artur e João Timóteo da Costa, Wilson Tibério, Rubem Valentim, Mestre Didi, Yedamaria, Alexandre Ignácio Alves, Edival Ramosa, Bauer Sá e tantos outros artistas se tornassem conhecidos por um público maior. Isso ocorreu por meio da expressiva quantidade de exposições, seguidas de publicações incontornáveis, entre elas A mão afro-brasileira (1988) e A nova mão afro-brasileira (2013), Negro de corpo e alma (2000) e Museu AfroBrasil: um conceito em perspectiva (2006), além da republicação, na íntegra, de textos clássicos sobre as artes negras brasileiras como As bellas-artes nos colonos pretos no Brazil: a esculptura (1904), de Raimundo Nina Rodrigues, ou O negro brasileiro nas artes plásticas, de Clarival do Prado Valadares (1968).
O que veio antes da visibilidade?
O atual, mas protelado interesse institucional pelas autorias negras – no teatro, cinema e nas artes visuais em particular – tem movimentado a cena cultural, especialmente em São Paulo. Apesar das históricas barreiras contra a mobilidade e ascensão social de pessoas negras, parece haver, finalmente, um reconhecimento da importância dos artistas negros no Brasil. Essa atração institucional – da qual a exposição Histórias afro-atlânticas (2018) foi o ponto alto, em função da apresentação de um amplo espectro da produção plástica no contexto atlântico – deve nos deixar alertas para os riscos da “comodização” da arte negra, que passa a circular embalada por quem detém maiores recursos. Com efeito, lembremos, grandes somas investidas terminam por ocultar o trabalho social necessário anterior ao atual quadro de visibilidade.
Para além desta que foi uma das melhores exposições do planeta naquele ano, movimentando acervos institucionais, particulares e dos próprios artistas de vários países, outras ações já aconteceram na cena artística negra brasileira, apesar do saldo nocivo do Golpe de Estado que retirou a então presidente Dilma Roussef do poder em 2016. Entre os muitos efeitos perniciosos do impeachment sem crime de responsabilidade está a dissolução do Ministério da Cultura em 2019, hoje ligado ao Ministério do Turismo.
Recursos essenciais em uma sociedade racista
Esse desmonte da cultura espraiou-se com força em duas instituições importantes para o cenário das artes negras: a Fundação Nacional de Artes (Funarte) e a Fundação Cultural Palmares. Criada em 1975, foi somente em 2012, graças à pressão dos movimentos negros no campo cultural e artístico e à capacidade de resposta do governo petista à época, que a Funarte lançou o Edital Artes Negras, reservando recursos para o financiamento de projetos nesse segmento, apesar de críticas contrárias.
Foram esses recursos que permitiram, por exemplo, que o curador Claudinei Roberto da Silva pudesse realizar a individual do artista paulistano Sidney Amaral (1973-2017), cuja carreira, interrompida abruptamente, estava em franca expansão. O banzo, o amor e a cozinha de casa, exibida em 2015 no Museu Afro Brasil, onde já havia obras do artista expostas no acervo de longa duração. Essa mostra continua sendo até hoje a maior individual de Amaral, que trouxe as diversas facetas de sua obra com quase 50 peças. Fica a pergunta: sem alocar esse recurso em uma sociedade racista, essa exposição e seu catálogo teriam sido possíveis? A descontinuidade desse edital, contudo, mesmo antes do impeachment, é um indicativo das enormes dificuldades de, após gerar políticas públicas para o segmento negro, dar prosseguimento a elas.
Criada em 1988 para defender os interesses da negritude brasileira, a Fundação Cultural Palmares é outro exemplo resultante da luta histórica dos movimentos negros que ajudaram a desenhar a Constituição de 1988. A Fundação realizou quatro edições do Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-brasileiras. Criado em 2010, ele teve como vencedoras as artistas paulistanas Rosana Paulino, em seu primeiro ano de vigência; Lídia Lisboa e Renata Felinto, ambas em 2012; além de artistas de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Tocantins e Pernambuco.
A obtenção de recursos financeiros não implica, porém, que as exposições sejam realizadas em espaços consagrados de artes visuais, pelo contrário. A título de exemplo: para a montagem de Afro Retratos, de Renata Felinto, foi necessário alugar três salas em um prédio comercial no centro de São Paulo, e prepará-las minimamente para receber a exposição em cartaz durante um mês, além de contar com ação educativa para crianças e jovens moradores da região central.
Zona de “vulnerabilidade”
Em novembro de 2019, a Fundação chegou a ter um presidente – Sérgio Nascimento de Camargo, filho do célebre escritor, jornalista e militante negro Oswaldo de Camargo – que se posicionou abertamente contra as lutas históricas do segmento negro por direitos civis, reduzindo-as a uma minoria de esquerda, desprezando assim também a trajetória de seu pai. Por pressão do meio negro organizado, ele foi destituído do cargo.
A atuação do poder público, no sentido de desenhar e implementar políticas públicas específicas para o segmento negro, foi que permitiu, há de se lembrar, a implantação do Museu Afro Brasil, em 2004, com recursos da Petrobras. O investimento possibilitou ao Museu tratar e ampliar seu acervo, bem como investir em pesquisa, publicações e ação educativa.
Esses poucos exemplos arrolados aqui, entre tantos outros, demonstram, todavia, o quanto o meio artístico negro está longe de sair da zona de “vulnerabilidade”. Assim, artistas, curadores, críticos, pesquisadores e não menos a obra artística seguem necessitando de financiamento público. Ao contrário do tradicionalmente restrito mercado de arte contemporânea, esse grupo de pessoas aposta, arrisca, acredita e investe – contanto que os benefícios sejam de fato distribuídos com a sociedade mais ampla.
Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.