Conversa com

Jesús Hilário-Reyes: Dissolvendo noções de grupo e indivíduo

Jesús utiliza poéticas e subjetividades da vida noturna para criar lugares de pertencimento onde as fronteiras são borradas. Em diálogo com o pensamento queere radical negro, e com uma preocupação ecológica, Hilario-Reyes desafia as noções convencionais de indivíduo, comunidade, estética e política.

Em uma conversa por videochamada com Hilário-Reyes, concordamos que a vida noturna queer é capaz de produzir um ambiente onde as noções de indivíduo e grupo são dissolvidas, fundando um lugar de pertencimento precisamente onde as fronteiras são borradas: “blur as a space to feel belonged to” (Desfoque como um espaço para se sentir pertencente). Em primeiro lugar, porque as pistas de dança são escuras, nebulosas e estroboscópicas. A presença de máquinas de fumaça e sistema de luzes criam um ambiente que potencializa o anonimato, a desinibição moral e o prazer coletivo. Além disso, é fundamental para as “poetics of nightlife” (as poéticas da vida noturna), como Hilário-Reyes bem descreve, que o som preencha o espaço de forma alucinatória — criando espirais e vórtices que sobem e descem, como furacões — para que a fusão dos corpos seja provocada. Por último, interessa que a introdução de sonoridades extremas, como o som de sirenes, provoque uma sensação de liberação coletiva. Hilário-Reyes explica que a inserção pontual de sons alarmantes, “beautiful and grotesque” (belos e grotescos), serve para criar um ápice dentro de uma temporalidade sônica mais prolongada, como a de um DJ set.

Hilário-Reyes é DJ residente da festa Nowadays, em Nova York, sob o nome MORENXXX, e combina performance, instalação, objetos e cinema expandido em sua prática artística. Recentemente, concluiu seu mestrado em escultura na Yale, apresentando a exposição Slip Index (2025). A exposição transporta elementos da cultura rave para o ambiente expositivo do cubo branco, explorando a memória coletiva e a ausência de som, um componente fundamental das festas. Ao transportar elementos dos clubes para os espaços expositivos de arte, elu apresenta um ambiente onde a memória coletiva, “the ghosts and the aftermath ideals” (os fantasmas e os ideais que vêm depois) é conjurada. Embora a exposição faça referências, de maneira mais ou menos explícita, à cultura rave, ela transcende esse tema à medida que combina elementos religiosos e aspectos ligados a Porto Rico, país natal de Hilário-Reyes.  

A obra Nowadays (2025) é uma pista de dança que foi instalada temporariamente na boate homônima. As pessoas dançaram sobre ela, produzindo marcas e borrões no piso. Em seguida, Hilário-Reyes removeu a pista com todos os seus vestígios e a colocou no espaço expositivo da galeria. Em A River Opens Up Into Many Windows (2025), Hilario-Reyes sobrepõe grades utilizadas comumente como portões de contenção para catástrofes, produzindo um efeito que descreve como “overlayed ornamentations” (ornamentações sobrepostas). Em outra obra, intitulada Dishonest Dancers, luzes estroboscópicas e fumaça são ativadas de trinta em trinta minutos, suscitando o caráter devocional e ritualístico das raves. Esse título foi inspirado em uma pintura religiosa que elu encontrou em uma igreja em Porto Rico, na qual figuras realizam uma dança litúrgica. No trabalho intitulado Holy Ghosted (2025), as raízes de plantas que vivem em manguezais se misturam às partes de órgãos de igreja distorcidos, mesclando materiais naturais e metálicos. Entre o sagrado e o natural, sua mostra Slip Index se converte em uma pista de dança silenciosa, onde vestígios humanos assombram este mundo, apontando tanto para o seu fim quanto para o seu ressurgimento. 

Em diálogo com o pensamento queer e radical negro, e com uma preocupação ecológica evidente, Hilario-Reyes desafia as noções convencionais de indivíduo e comunidade, estética e política. Em relação ao pensamento Afro-caribenho de Edouard Glissant, apresenta um espírito de mobilidade relacionado aos arquipélagos e uma teoria da opacidade através dos desfoques e nebulosidades das festas de música eletrônica. Em diálogo com as ideias de Legacy Russel e Esteban Munoz, aponta para a capacidade fabulatória dos corpos queer em relação à organização política tradicional, sugerindo uma política queer que emerge da dissolução das identidades individuais. Ao mencionar, em nossa conversa, o livro Parábola do semeador, da escritora Octavia Butler, Hilário-Reyes sinaliza como tempos marcados pela desigualdade, colapso econômico e mudanças climáticas extremas, exige o reforço das interdependências coletivas. “O que me toca, toca os outros” repete a personagem Lauren Olamina na ficção científica. Através de uma prática interdisciplinar, que prefere chamar de antidisciplinar, assume as limitações estruturais do campo da arte e da música e afirma: “I can do all of it” (eu posso fazer tudo isso). Ressaltando, contudo, que “music is the key path for this formations” (a música é o caminho-chave para essas formações).   

Guilherme Ferreira (Rio de Janeiro, 1996) é pesquisador, mestre e doutorando em comunicação e cultura pela Universidade do Rio de Janeiro, onde estuda arte contemporânea e pensamento ecológico. É membro da rede de pesquisas Anthropocene Commons e pesquisador visitante da Universidade Bauhaus de Weimar. Também trabalha como designer, escritor, pedagogo, curador independente e participa do coletivo brasileiro de artistas Acta.

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