Em Porto Rico, uma ilha que foi ignorada politicamente e considerada antes de tudo, e durante muito tempo, apenas um destino turístico no Caribe, têm acontecido nos últimos tempos protestos sociais e políticos contra o status de colônia em relação aos Estados Unidos. Esses protestos conseguiram derrubar aquele que era até agora governador da ilha. Falamos com personalidades da comunidade artística de Porto Rico sobre os atuais protestos e sobre o futuro que imaginam para a ilha.
Manifestantes celebram, em Porto Rico, a renuncia do governador Ricardo Rosselló, em 25 de julho de 2019. Foto: Daryana Rivera. CC BY-SA 4.0.
Depois do maior protesto da história de Porto Rico, que reuniu 500 mil pessoas incluindo artistas e músicos, ocorreu no início de agosto último a renúncia do governador Ricardo Rosselló. Semanas antes, foram descobertas e publicadas centenas de páginas de textos misóginos, homofóbicos, racistas e ofensivos contra o povo de Porto Rico, oriundas de uma série de conversas online entre o governador e onze membros, todos homens, de seu gabinete. Falamos com quatro personalidades da comunidade artística de Porto Rico sobre os protestos e sobre o futuro que imaginam para a ilha.
Michy Marxuach, curadora, cofundadora de Beta-Local e ex-diretora da M&M, espaço alternativo dedicado a fortalecer a produção de arte contemporânea em Porto Rico
O que se passou nas últimas semanas em Porto Rico foi uma coreografia orgânica sem coreógrafo. Tornou-se visível a diversidade de grupos que há anos estão organizando formas de sobreviver e responder, cada qual com suas urgências. Mas agora há uma urgência comum que provocou uma ação coletiva em resposta à agressão que há anos vem ocorrendo na ilha. Foi um momento de emancipação e decolonização em todos os sentidos, não apenas do arcabouço político, que continua fazendo o jogo de parecer indispensável, mas também uma reivindicação dos direitos da mulher, da comunidade LGTB e da vida de todos os organismos que existem neste território.
Somente através da construção do futuro no presente será possível haver espaço político e social futuro. Para isso, a meu ver, deverá acontecer uma mudança radical nas relações de poder. E não apenas nas políticas administrativas, mas também na forma como e com quem nos relacionamos, e como e para que queremos desenvolvimento… Se não nos decolonizarmos para nos reconstituir, continuaremos patinando até o colapso de nossos sistemas e de nosso planeta… A resposta sobre qual seria a estrutura adequada tem que ser respondida na prática e não pode ser novamente importada como parte de um “plano diretor”.
Tony Cruz Pabón, artista e cofundador de Beta-Local
Sobre a saída de Rosselló: é incrível sentir que coletivamente podemos mudar coisas. Este é um grande salto como país. Sobre a forma dos protestos: sempre acreditei que a música é a expressão cultural mais poderosa que temos, e aqui deixo claro ‒ ela foi o fio condutor dos protestos. Isso sem tirar o mérito de todas as formas que foram utilizadas. Sobre o futuro político da ilha: não sei se já é possível imaginar uma estrutura política futura… Talvez, mas não posso fazê-lo agora. O que fica claro na maneira como Pedro Pierluisi [novo governador de Porto Rico] subiu ao poder é que esta é uma luta de classes. Há um grupo de pessoas que cuidam umas das outras, e essa é a parte mais difícil de mudar.
Michel Nonó, ativista e uma das duas irmãs do coletivo artístico “As Netas de Nonó”
A atual crise política evidencia também a urgência da reivindicação que o povo tem feito através de diversas frentes para que se revise a dívida atribuída ao povo de Porto Rico. É uma dívida que empurrou nossas comunidades à austeridade. Isso evidencia que o governo (não apenas nesta administração) tem atuado em seu próprio benefício. A Auditoria Participativa é um processo de reparação e justiça para com o povo.
Tem sido significativa a diversidade de vozes nas ruas manifestando-se contra o governo corrupto e apático; o poder das vozes das pessoas que vivem em comunidades e o poder das vozes de pessoas LGBTQIA+, pois, embora houvessem nos tornado invisíveis, também somos parte do povo.
Meu sonho é que isso represente o fim do bipartidarismo neoliberal e de seu status quo… As comunidades de Porto Rico têm se reorganizado em termos econômicos, ambientais, pedagógicos e sociais, e isso é uma mostra de que sabemos o que queremos e do que precisamos.
Karlo Andrei Ibarra, artista e cofundador da galeria Km 0.2 em San Juan
Parece-me que o que se passou em Porto Rico é o resultado de uma ruptura coletiva relacionada à fibra moral do país. O chat prepotente dos políticos frente à dor de um povo que não se curou e literalmente não enterrou seus mortos do Furacão Maria (2017) foi a gota que fez transbordar o copo. Parece-me que o clima político vai continuar cercado de instabilidade, pois o processo que temos experimentado nestas últimas semanas demonstrou que todos os setores unidos, em conjunto com a pressão midiática, podem levar um recado de repúdio às políticas de corrupção. A partir deste momento, os políticos devem estar pensando que chegou ao fim o tempo em que faziam e desfaziam a bel prazer.
A pergunta sobre o futuro da ilha é muito complexa. Pessoalmente gostaria de um país livre e soberano. Por outro lado, as ações do partido governante tornaram mais distante que nunca a perspectiva de ser um Estado independente. Temos uma junta de controle fiscal cuja função é, como hienas ou aves de rapina, favorecer Wall Street e os grandes interesses econômicos. Desejo que se analise em primeiro lugar a dívida, que sob todas as luzes sabemos que é ilegal, que se derrote a junta fiscal, e que as pessoas comecem a mudar a forma como votam nas eleições… Anseio por uma grande coalizão entre todos os setores que derrote de uma vez por todas o bipartidarismo que tanto sangrou o país.
Lisa C Soto reuniu as respostas. Nascida em Los Angeles, na Califórnia, ela cresceu em Nova York e em um povoado tradicional do sul da Espanha. Sua herança caribenha e seus contínuos movimentos entre continentes e ilhas têm orientado seus temas artísticos.
Traduzido do espanhol por Soraia Vilela.