Em suas práticas artísticas, Gladys Kalichini e Maritea Dæhlin lidam com memória, ancestralidade e espiritualidade. Enquanto Kalichini se dedica a histórias apagadas de mulheres zambianas e ao trabalho com a água como arquivo vivo; Dæhlin combina suas raízes norueguesas-camaronesas com rituais de sono, criando espaços de confiança, vulnerabilidade e transformação.
Originally a plant (Originalmente uma planta) por Maritea Daehlin. Foto: Vegard Kleven
Gladys Kalichini, This memory will not fade (Esta memória não desaparecerá), Livingstone, 2024. Fotos por Bwanga Kapumpa
Embora estejam separadas por continentes, as práticas artísticas de Gladys Kalichini, nascida e residente na Zâmbia, e Maritea Dæhlin, que vive entre o México e a Noruega, convergem em diversos aspectos. Ambas criam espaços de preparação do corpo para uma jornada ancestral, por meio da execução de gestos cotidianos como lavar-se e dormir.
Durante a pandemia da Covid-19, o Office for Contemporary Art Norway (OCA) lançou uma parceria digital em colaboração com o Livingstone Office for Contemporary Art (LoCA) e com a comunidade artística Casa Ma na Costa Rica. O objetivo da colaboração é promover transformações sistêmicas nas instituições de arte da Noruega. Os objetivos da residência foram fortalecer redes com comunidades Negras, e estudar as maneiras que contextos geográficos influenciam discursos artísticos.Participando diretamente da Zâmbia, Gladys Kalichini trabalhou em parceira com a ativista e crítica de arte Grace Tabea Tenga, que reside em Oslo. Enquanto isso, Maritea Dæhlin, entre o México e a Noruega, trocou digitalmente experiências com o artista costarriquenho Marton Robinson. A residência resultou em um programa discursivo e uma exposição na Galeria Nacional da Zâmbia e no Museu Nacional da Zâmbia.
Em novembro de 2024, via Google Meet, Gladys Kalichini e eu recriamos o ambiente de sua série …these practices are done in sharing her stories (2020-2022), na qual a artista investiga formas de compartilhar e transmitir memórias por meio de rituais de limpeza. Nesse contexto, a água aparece como uma entidade viva, capaz de funcionar tanto como receptáculo quanto como espelho do corpo humano, que também funciona como arquivo. O espaço conta com uma estância de lavagem equipada com bacias, sabão e toalhas, criando um ambiente acolhedor onde participantes compartilham histórias enquanto Kalichini lava as mãos e pés de quem para por ali: um gesto de cuidado e escuta atenta.
Posteriormente, conversamos sobre a obra que Kalichini criou em 2022 com sua avó em Kamwala, na cidade de Lusaka (Zâmbia) … still, these practices are done in sharing her stories (2022), dando continuidade ao vídeo em quatro canais de 2020, chamado …these practices are done in sharing her stories. O trabalho investiga a retenção da memória após a morte, utilizando a água para canalizar a reflexão sobre os ciclos de vida do corpo. Nesta performance interativa, a avó de Kalichini, vestida com tecidos tradicionais em estampa wax e roupas brancas que remetem a períodos históricos ligados às narrativas dessas mulheres, torna-se um elemento central. A presença de sua avó e suas histórias se manifestam por meio do ritual da lavagem, criando uma ponte entre a memória pessoal e a história coletiva. Grande parte da obra de Gladys Kalichini gira em torno da preservação, questionando continuamente como a memória é armazenada e mantida.
Nossa conversa sugeriu que a água pode ser capaz de dar respostas de maneiras que, com frequência, fogem às expectativas humanas, e que, para se comunicar com ela, é necessário ter outro olhar. O envolvimento de Kalichini com os arquivos, enquanto busca narrativas apagadas de mulheres na história zambiana, segue uma abordagem semelhante. Ela compartilhou que, de início, o arquivo era “um espaço complicado, pois as histórias de mulheres nunca chegavam lá, e quando chegavam, tornavam-se invisíveis”.
Interessadas em entender melhor como as figuras dessas mulheres deram forma à sua identidade, chegamos à Julia Chikamoneka, cujo nome em bemba significa “tornar-se vista”. Em sua tese de doutorado, Kalichini descreve como navega pelos arquivos para trazer figuras Julia Chikamoneka de volta à memória coletiva. Esse processo se materializa em suas instalações multimídia, que combinam fotografias de arquivo e materiais das lutas pela independência. Utilizando vídeo, tecido, papel e tinta, Kalichini cria espaços que homenageiam as mulheres combatentes que lutaram pela libertação, bem como as complexidades da memória. Ao inserir a imagem de Chikamoneka nesses ambientes dinâmicos e táteis, Kalichini não apenas comemora o legado da homenageada, mas também reanima sua presença, garantindo que sua história ressoe além dos limites do arquivo, tornando-se parte de uma consciência histórica compartilhada. A artista ressalta: “Ela estava me ajudando a dar forma a uma visão; para vê-la, eu precisava imaginá-la aqui”.
A prática de Maritea Dæhlin também assume uma forma fluida, na qual corpo, linguagem e pensamentos transitam entre diferentes lugares, transformando-se de modo a desafiar o que é considerado tradicional. Ancestralidade e espiritualidade servem como fontes de inspiração e oferecem um arcabouço para compreender sua identidade norueguesa-camaronesa, bem como sua expressão artística. Dæhlin frequentemente reflete sobre sua família próxima, isto é, sua mãe, avó e bisavó. Essa conexão tangibiliza a ideia abstrata de ancestrais, permitindo-lhe se inspirar nos legados artísticos deixados por elas. Em sua performance e vídeo I WANT TO BE TRADITIONAL (2020), a artista utiliza materiais táteis aplicados diretamente sobre a pele, cobrindo-a com argila. Este gesto remete tanto à influência de sua avó, ceramista dinamarquesa, quanto ao significado simbólico da argila em relação com sua própria fisicalidade. Já em Originally a Plant (2022), ela pinta o rosto de vermelho, estabelecendo uma conexão intuitiva com sua bisavó camaronesa. Além disso, Dæhlin incorpora à sua prática outros materiais naturais, como o sal no vídeo Represent. Ao fazê-lo ela mergulha em temas de conservação e dor; evidenciando ao mesmo tempo a dualidade do sal, que é, tanto um agente de proteção e uma fonte de desconforto. Esses elementos se integram organicamente aos seus espaços de performance, ancorando suas investigações abstratas em experiências sensoriais concretas que a conectam às suas raízes, sem necessariamente reproduzir práticas culturais específicas.
I WANT TO BE TRADITIONAL (QUERO SER TRADICIONAL) por Maritea Dæhlin. Foto: Hans Petter Eliassen
Durante uma conversa online sobre seu trabalho na residência, discutiu-se o papel da língua e como algumas pessoas são constantemente obrigadas a compreender, enquanto outras dominam a narrativa e “o entendimento”. Essa alternância contínua entre idiomas é um elemento central no trabalho de Dæhlin, e possibilita transições para um estado entre mundos, a um espaço aberto à interpretação, entre o sono e a vigília, onde se adentra o que não é visto e a habilidade de conviver com o que é.
Maritea Dæhlin, em seu trabalho relacionado ao sono, cria espaços de relaxamento que fomentam a confiança e proporcionam um ambiente onde participantes possam escrutinar suas vulnerabilidades por meio do ato de dormir e acordar em conjunto, enquanto ouvem uma composição sonora que questiona e resiste à própria ideia de descanso e sono. Essa experiência inclui o uso de elementos como chá de lavanda, para promover relaxamento, e a ambientação de cenários que proporcionem uma sensação profunda de conforto. Em Sleep Locks the Bones (2024), tons quentes de roxo e magenta criam uma atmosfera íntima, com camas dispostas ao redor de uma luz suave (desenvolvida em colaboração com o cenógrafo Corentin Leven e outros), convidando participantes a se entregarem a um estado onírico.
Represent por Maritea Dæhlin, still do vídeo. Foto: Isaac Díaz Valderrama
A artista também destaca a importância da confiança em seu trabalho, especialmente o desejo de chegar a um ponto em que possa “dormir no meu próprio trabalho”, o que indica confiança nas experiências que cria e que também reflete o desejo de que sua prática artística seja um espaço de segurança e acolhimento, tanto para si quanto para as pessoas que interagem com sua obra.
Apesar de trilharem caminhos diferentes, Maritea Dæhlin e Gladys Kalichini demonstram, por meio de suas obras, que conexões acontecem muito além dos meios materiais. Por meio de residências online e ao se conectarem suas ancestralidades africanas, ambas promovem a necessidade de entender as conexões mais profundas entre o invisível e nossa existência física.
Gladys Kalichini é artista visual contemporânea e pesquisadora de Lusaka, Zâmbia. Seu trabalho orbita noções como apagamento, memória, representação e visibilidade de mulheres nas histórias de resistência ao colonialismo.
Maritea Dæhlin é artista de ascendência camaronense que vive e trabalha na Noruega e no México. Sua obra, que abrange vídeo, performance, som e texto, toma forma por meio de geografias e contextos em constante mudança, sendo multilíngue, não linear e, por vezes, absurda.
Sheila Ramirez é designer e pesquisadora cubana-angolana que se dedica ao estudo de cosmologias ancestrais por meio de arquivos e musicalidades do continente africano e do Caribe.
Este texto é uma colaboração editorial entre OCA e C&AL.
A OCA lançou essa residência domiciliar em parceria com a biblioteca e centro de pesquisa independente Livingstone Office for Contemporary Art (LoCA), na Zâmbia – uma iniciativa de artistas e sem fins lucrativos – e a comunidade artística Casa Ma, na Costa Rica. Em 2024, o livro Voicing Out Silences, resultado da residência, foi publicado pela editora ASSATA.
Tradução: Jess Oliveira