Brasil

O que está por trás dos movimentos decoloniais no Brasil?

Na última década, o Brasil tem presenciado movimentos decoloniais que atravessam todos os campos da vida social, política e cultural. Neste texto, Will Furtado compartilha suas observações após viver no país em 2023 e apresenta algumas questões que contribuem para essas mudanças históricas.

A arte imita a vida ou é a vida que imita a arte? Ora, são os dois e simultaneamente. Apesar desses acontecimentos serem recentes, eles são o resultado de um longo processo de letramento racial no Brasil, algo que está muito mais avançado nesse país em relação ao resto da América Latina. Letramento racial é a consciencialização de como as relações raciais estruturam nossas sociedades. É uma percepção da história difícil de disseminar por razões históricas, como a propaganda Lusotropicalista (a ideia de que o colonialismo português foi benevolente) e a democracia racial (o fato de que não existiria racismo no Brasil, já que o país é multicultural e miscigenado).

No entanto, já faz várias décadas desde que teóricos, escritores, e outros pensadores negros e negras do Brasil publicaram trabalhos críticos importantes. Eles desmentiram essas falácias, influenciaram o imaginário social brasileiro e ajudaram a construir e a reconhecer a identidade negra no país.

Entre 1944 e 1961, o Teatro Experimental do Negro (TEN) fundado por Abdias Nascimento e Maria de Lourdes Vale do Nascimento, realizou várias produções sobre temas amplos, orientados por uma consciência negra pulsante. Nos anos 1970, surgiram vários grupos de mobilização política negra, como o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), desenvolvido por Thereza Santos, em 1971; a Fundação da Federação das Entidades Afro-brasileiras do Estado de São Paulo, em 1976, e o Movimento Negro Unificado (MNU) e o Festival Comunitário Negro Zumbi (FECONEZU), todos em 1978. Em 1995, Maria Lucia da Silva abriu o Instituto AMMA Psiquê e Negritude, a primeira organização que conectava a prática psicológica e política, por meio das relações raciais. E estes são só alguns exemplos.

A filósofa e antropóloga Lélia Gonzales (1935-94) fez parte de alguns desses movimentos. Ela publicou vários ensaios nos quais denunciou a intersecção entre o racismo e o sexismo, criticou a disseminação da ideia de democracia racial, e teorizou a Amefricanidade — a herança africana das Américas. A historiadora, poeta e ativista Beatriz Nascimento (1942-95) pesquisou intensamente a história e a cultura dos quilombos brasileiros. Ela contextualizou os quilombos como “sistemas sociais alternativos organizados pelos negros”, com origem na África. Para Beatriz Nascimento, “o quilombo é o espaço que ocupamos; somos nós, é o momento de resgate histórico”(1). Outra importante contribuição para a formação da consciência negra no Brasil foi o trabalho da psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza (1948-2008). Em Tornar-se Negro (1983), Neusa esclarece que a descoberta de ser negra é também a experiência de se comprometer a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. Para ela, “ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser” (2), uma tarefa eminentemente política que contesta a doutrina de que pessoas negras em ascensão social devem se tornar uma caricatura de branquitude, e a armadilha de reservar o trabalho antirracista exclusivamente para elas.

Todas estas pensadoras e muitas mais são as pessoas que influenciaram o letramento racial que hoje em dia informa muitos artistas, curadores, escritores, acadêmicos, e diretores artísticos brasileiros e brasileiras. Sem elas, não teríamos tido curadores negros nas duas últimas edições da Bienal de São Paulo, por exemplo. No entanto, o que me mais surpreendeu foi encontrar esse letramento fora dos círculos criativo-acadêmicos — tanto na política quanto nas ruas. E ele também vem sendo atravessado por questões de gênero.

Não é coincidência que, apesar de o Brasil ter estado sob um governo de extrema direita por quatro anos, Bolsonaro foi proibido de voltar a se candidatar, enquanto Erika Hilton, uma mulher negra e trans, é uma das políticas mais populares do país. Ou que a minha amiga, depois do café, me levou a restaurantes e livrarias afrocentrados. Lugares que como pessoa afrodescendente tive a oportunidade única de conhecer, porque como me disseram: em tempos de neoliberalismo também há que proteger nossas comunidades da gentrificação não só material, mas também intelectual.

Também não é coincidência que o processo de letramento racial no Brasil tenha sido acompanhado por décadas de governos de esquerda no país, por mudanças sociais nos EUA e na Europa e pelo mercado de arte nacional – e internacional – sempre sedento pela última “novidade”. Só para dar uma referência: em “2023, o mercado de arte no Brasil alcançou um valor total estimado de aproximadamente R$ 2,9 bilhões (USD 580 milhões), um crescimento de 21% em relação ao ano anterior” (3). A economia imita a arte ou a arte imita a economia? Ora, as duas coisas – simultaneamente.

Will Furtado é editore-chefe da C&AL.

 

1 Maria Beatriz Nascimento, Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Editora Filhos da África, 2018, p. 352.

2 Neusa Santos Souza, Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p. 115.

3 Associação Brasileira de Arte Contemporânea; Agência Brasileira de Promoções de Exportações e Investimentos, 7ª pesquisa setorial do mercado de arte no Brasil. São Paulo: Act Editora, p. 10.

Tópicos