Com fotografias antigas e processos alternativos, o artista luso-angolano explora as infinitas possibilidades da imagem.
Délio Jasse, The Lost Chapter, Nampula, 1963, 2016. Emulsão fotográfica e serigrafia em papel Fabriano. Cortesia do artista e da galeria Tiwani Contemporary, Londres
Délio Jasse, Terreno ocupado, 2014. Cianótipo em papel Fabriano. Cortesia do artista e da galeria Tiwani Contemporary, Londres
Délio Jasse, Cidade em movimento, 2016. Cianótipo em papel Fabriano. Cortesia do artista e da galeria Tiwani Contemporary, Londres
Délio Jasse, Pontus, 2011. Aquarela e emulsão fotográfica em papel Fabriano. Cortesia do artista e da galeria Tiwani Contemporary, Londres
Délio Jasse, Pontus, 2017. Aquarela e emulsão fotográfica em papel Fabriano. Cortesia do artista e da galeria Tiwani Contemporary, Londres
“É como se eu realmente conhecesse estas pessoas e tivesse fotografado todas elas”, afirma o artista Délio Jasse no início do ano de 2017, referindo-se às imagens da série The Lost Chapter, Nampula, 1963 (2016). Apresentada na edição de 2017 da revista Aperture, “Platform Africa”, as imagens de Jasse combinam documentos, cartas e fotografias da década de 60 encontradas em um mercado de antiguidades em Lisboa. São registos espontâneos da vida de uma família portuguesa em Nampula, uma província de Moçambique, no período pré-independência, em que Moçambique ainda era uma colónia portuguesa. Jasse, que nasceu em Luanda, Angola – outra antiga colónia portuguesa – usa processos fotográficos analógicos, como o cianótipo, para reflectir sobre a ligação entre o passado e o presente na cultura e na política africana pós-colonial.
Nas imagens de The Lost Chapter, Nampula, 1963, figuras anónimas em registos instantâneos familiares tornam-se símbolos do privilégio colonial português: os portugueses aproveitam o estilo de vida tropical, enquanto os empregados negros são relegados às margens. Jasse interviu nas imagens, cobrindo-as com carimbos de selos e vistos. “Mais do que histórias abstractas, no entanto, Jasse parece ter descoberto a violência existente na documentação”, escreve Silas Martí na introdução ao portfólio do artista publicado na revista Aperture. “Jasse deixa isso claro ao subverter estas fotografias, resgatadas do esquecimento – imagens aparentemente inocentes e indiferentes são ofuscadas pelo peso fluorescente da autoridade.” Aqui, Jasse fala com Paula Nascimento sobre arquivos, cidadania e a imagem posterior do colonialismo português em África.
Paula Nascimento: O teu trabalho explora temáticas como memória e identidade num contexto que é pós-colonial. Ao cruzar fontes dispersas, estabeleces relações entre fotografia, memória e lugar.
Délio Jasse: Sim, estes têm sido temas centrais no meu trabalho. Gosto de explorar a relação entre a fotografia e a memória usando arquivos como matéria-prima. A temática da memória está relacionada com a fotografia enquanto meio expressivo.
PN: Com que tipo de arquivos normalmente trabalhas?
DJ: Trabalho tanto com arquivos encontrados (normalmente arquivos familiares) como com o meu próprio arquivo – imagens que fotografo em Luanda e um pouco por todo o mundo. No estúdio, tenho colecções de imagens – novas, antigas, tiradas por mim, encontradas etc. – à espera de serem processadas. Diria que o arquivo enquanto tema e conceito, e a forma como me debruço sobre arquivos existentes, alterando e expondo as suas contradições, é primordial no meu trabalho.
PN: O que nasce primeiro: a imagem do projecto ou o conceito da série?
DJ: A imagem nasce primeiro, depois o conceito. Eu diria que é a imagem que me encontra e não o contrário. Por outro lado, por trabalhar sempre à volta da mesma temática, é fácil desenvolver a estrutura conceitual dos projectos.
PN: Há algum tempo atrás, falávamos sobre o papel da memória na tua obra, afirmaste que o aspecto mais importante é a forma como, enquanto artista, te posicionas e o ponto sobre o qual decides olhar o passado. Como começa a pesquisa e como te aproximas dos arquivos com os quais trabalhas?
DJ: A fotografia nunca é objectiva, e o olhar do fotógrafo é mais importante do que o objecto fotografado. No meu caso particular, a memória nasce no encontro entre o passado e o futuro, que nem sempre é harmonioso. Tendo em conta que o olhar é sempre fragmentado e nunca objectivo, o objecto em si – seja o passado ou um evento específico – torna-se frágil e efémero.
Eu levo algum tempo a criar arquivos de imagens, ou, como costumo dizer, a criar um corpo de imagens que se relacionem umas com as outras. Quando encontro alguma imagem ou quando fotografo, deixo as imagens “repousarem” por um tempo, até ao momento em que sou naturalmente atraído para determinados pormenores ou aspectos. Estes depois se tornam o ponto de partida para as novas séries e a partir daí, começo a experimentar e pensar nas técnicas que vou usar.
No caso do arquivo de Nampula, por exemplo, encontrei-o na Feira da Ladra, em Lisboa, e intrigou-me a imagem de um grupo de senhoras num carro. Aquele carro lembrou-me de um determinado tipo de riqueza, num período específico de tempo. Somente quando parei para olhar com mais pormenor e virei o papel é que reparei que a fotografia tinha sido tirada em Moçambique em 1963. Interessei-me logo pelo contraste entre a imagem em si e o lugar onde foi tirada.
PN: O que queres dizer com contraste? A alienação dos personagens brancos em contraponto com o contexto político de segregação e das lutas pela independência em Moçambique, que é de certa forma sugerida pela ausência de moçambicanos negros nas imagens?
DJ: Estas imagens poderiam ter sido tiradas em qualquer sítio no mundo ocidental. São em África, mas não tem nada nelas que indique esta localização. Não só não contêm nenhuma simbologia que aluda à geografia, como também quase não se veem negros. Os poucos negros que aparecem nas imagens (serventes) estão semiescondidos, não é fácil identificá-los. Este é o contraste de que falava, de como as suas vidas pareciam completamente europeias versus o espaço físico onde as pessoas estão. Pensando bem, talvez o termo “contraste” soe um pouco ambíguo aqui, talvez devesse falar do “apagamento” de África e dos negros africanos.
PN: Voltando um pouco no tempo, és parte de uma geração de jovens que deixou Angola e mudou-se para Portugal na década de 90. Como foi a tua experiência enquanto imigrante? Isto influenciou de alguma forma a escolha dos temas que abordas?
DJ: Eu mudei-me para Lisboa quando fiz 18 anos. Nos primeiros anos lá, tinha documentos, mas em determinado momento, não tinha contracto de trabalho e perdi a minha residência legal. Como o meu pai tem nacionalidade portuguesa (o meu avô era do Norte de Portugal), eu candidatei-me à nacionalidade portuguesa. O processo foi uma loucura total. O meu certificado de nascimento perdeu-se em Luanda, e tive que tratar de novos documentos. Surgiu uma série de problemas burocráticos que pareciam impossíveis de resolver, uma situação grotesca mesmo. Os meus irmãos conseguiram os documentos portugueses muito rápido, mas o meu caso parecia um problema interminável, sem resolução. Até que em 2010, recebi uma carta a dizer “olá, finalmente és português”… Mas até agora, não sei quais documentos ou que informação funcionou ou não.
PN: Claramente esta narrativa explica um pouco do teu desejo de expor a ambiguidade destes processos de imigração e cidadania. Interessam-te as histórias das personagens que encontras e coleccionas, ou preferes ficcionalizar e criar novas relações e significados?
DJ: Ambos – depende muito se estiver a trabalhar com material encontrado ou com imagens fotografadas por mim. Com os arquivos encontrados, interessa-me delinear novas narrativas; ao passo que com as minhas imagens, interessa-me questionar as fontes e histórias oficiais. Por exemplo, na série Pontus (2012), não se consegue decifrar o lugar onde as imagens foram feitas. Gosto de criar armadilhas para o espectador.
Por outro lado, em grande parte do meu trabalho, assumo a não realidade da imagem final e interessa-me chamar a atenção para o processo de criação: a manipulação ou sobreposição de imagens, seja meu próprio material ou imagens encontradas. As imagens construídas pertencem a um espaço que não é completamente real nem completamente fictício, nem realidade nem memória.
PN: Os processos que usas para construir imagens são fascinantes. Como começou o teu interesse pela fotografia?
DJ: Apaixonei-me pela fotografia depois de trabalhar em um atelier de serigrafia. Trabalhei no atelier dirigido pelo meu tio, em Lisboa, entre 2003 e 2007. Havia um estúdio de fotografia dentro do atelier, onde costumávamos separar as cores para criar fotolitos. Desenvolvi meu interesse em fotografia a partir desta experiência.
PN: Esta experiência explica a tua preferência por técnicas e métodos alternativos que usas para construir imagens?
DJ: O único elemento que retive da serigrafia no meu trabalho é o uso de diferentes camadas para a construção da imagem final. Trabalho quase sempre com fotografia analógica – por vezes uso imagens digitais como instrumentos – e também crio as minhas emulsões.
Uma vez até tive que construir a minha própria máquina fotográfica… Foi a primeira vez que regressei a Luanda, depois de um longo período fora, e não me sentia confortável em andar pela cidade com a minha máquina, então construí uma simples, feita de cartão com um buraco.
PN: E o que fotografaste com esta máquina? Já usaste as imagens?
DJ: A máquina funcionou sim, e as imagens resultantes são muito peculiares: exposições de longa duração, com muitas nuances e sobreposições. Diria que são mais experiências do que imagens reais, com um ar onírico. Ainda não as usei, quiçá no próximo projecto.
PN: O teu laboratório deve ser um sítio mágico. É o espaço criativo onde os processos ganham vida.
DJ: O estúdio fotográfico é essencial no meu trabalho. É o espaço onde crio a maior parte dos meus trabalhos – para ser mais preciso, usaria a palavra “construo”, como sugeriste. Quando recolho uma imagem antiga, tenho que, antes de tudo, criar um novo negativo. Não só fotografo a imagem, mas também decido como trabalhar nela – escolho fazer montagens, colagens etc. A técnica que escolho usar no início é importante porque define todo o aspecto da série final.
Trabalho essencialmente com processos considerados “alternativos”. Neste momento, estou a explorar o cianótipo, uma técnica de impressão usada inicialmente por botânicos para registar plantas. As imagens são criadas com a luz solar, não há necessidade de ter uma câmara escura. Mas já usei outras técnicas antigas. O tipo de intervenção a usar depende muito do estado de conservação das imagens.
Os carimbos e os documentos usados em The Lost Chapter, por exemplo, são também essenciais no meu trabalho, e são inseridos usando serigrafia ou fotografia. Mas não há ligação entre os documentos e os indivíduos nas imagens. A ideia é mostrar a arbitrariedade dos documentos oficiais. Não somos quem somos só porque um documento o diz.
PN: É um processo complexo, tanto do ponto de vista técnico como simbólico.
DJ: Os métodos que utilizo têm diferentes níveis de complexidade, dependendo da expressão e do conceito do projecto.
Ao mesclar o processo e o produto final, acabo por desconstruir o processo de criação da imagem. Então sem esses processos alternativos, meu trabalho não existiria. Interessa-me expor esses processos alternativos e tornar as várias etapas de criação “físicas”, e visíveis. A imagem final acaba sendo nem unívoca nem homogénea. Cada camada pode ser vista individualmente ou em conjunto. Gosto de me envolver com as infinitas possibilidades que uma imagem, ou uma vida, tem – ou poderia ter – e para mim a melhor maneira de fazer isso é assumir o processo como uma parte fundamental do processo de criação artística.
Paula Nascimento é arquitecta e curadora, baseada em Luanda.
Este artigo é parte de uma série produzida em colaboração com a revista Aperture, coincidindo com a edição “Platform Africa”, de 2017.