Os tiros que mataram a vereadora carioca ecoaram pelo Brasil e pelo mundo, num misto de indignação e perplexidade. Convidamos algumas artistas brasileiras para falar o que o assassinato de Marielle Franco significa em termos de lutas e questões.
Mídia Ninja, Ato Inter-Religioso - Rio de Janeiro - 20/03/2018. CC BY-NC-SA 2.0
Aos 38 anos, a socióloga Marielle Franco era voz atuante na defesa dos Direitos Humanos e na luta por dignidade e respeito às minorias. Ao ser morta, estava em pleno exercício de seu primeiro mandato como vereadora, para o qual foi eleita com mais de 46 mil votos. Negra, pobre, criada na Favela da Maré, uma das mais violentas do Rio, Marielle era voz que falava sem medo e que, cada vez mais, era ouvida e respeitada. E não se intimidava em denunciar abusos da polícia, cobrando justiça. Em seus últimos dias de vida, mirou especificamente o extermínio de jovens pobres e pretos nas comunidades cariocas. “Quantos mais precisarão morrer para que essa guerra acabe?”, questionou, numa rede social, dias antes de se tornar mais uma vítima. A quem interessava calar essa voz? Quem mais os tiros queriam intimidar?
A C& América Latina ouviu artistas brasileiras para saber o que a morte de Marielle representa em termos de cerceamento de liberdade para as perspectivas afro-brasileiras na vida pública do país.
Renata Felinto: nós por nós mesmas O cerceamento sempre esteve caminhando conosco. A grande diferença é que, agora, está declarado que quando nós, mulheres negras, para além de sermos pensantes, mobilizadoras e influenciadoras, demonstramos que temos também potencial de conscientização política, com alcance amplo na comunidade nacional e internacional, corremos riscos que extrapolam as tentativas de deslegitimação das nossas falas e posicionamentos, condutas e modos de fazer política. Deslegitima-se nossas humanidades de forma abrupta e sangrenta. Chegamos num ponto extremo: grupos políticos que se encontram no poder (leia-se brancos e homens) e que discordam das parcas conquistas obtidas nas últimas décadas, ou mesmo não suportam as multiplicidades de pensamentos, ou ainda, se sentem ameaçados em sua hegemonia genocida, decidiram que o silenciamento não é somente das vozes e das denúncias, das ideias e das perspectivas diferentes, mas também das pessoas, das mulheres negras. O retrocesso é das elites, dos poderes públicos, dos partidos políticos. Continuaremos avançando mais e mais. E, a cada Claudia, Luana, Marielle, continuaremos, porquê a luta somos nós por nós mesmas. Vemos que ninguém fará isto por nós. Vamos continuar apontando, denunciando, refletindo, questionando. É o que nos resta e isso não podem nos tirar.
Ana Lira: diluir a cultura do sacrifício Se o cenário pode nos ensinar algo, é a ver o que conseguimos enraizar. É usar as redes que temos para afirmar as narrativas coerentes, em vez de nos perdermos no emaranhado de fake news e armadilhas que tiram o foco. A repercussão do caso e a força coletiva gerada deste encontro foi incrível. Foi muita sinergia, mas prefiro Marielle viva. Não podemos mais lutar morrendo. Precisamos rever este percurso. Não podemos mais falar em força do corpo negro, se isso significar mais corpos nos índices da manipulação política e midiática. Precisamos diluir esta cultura do sacrifício, a começar pelos nossos discursos. Passei a semana refletindo sobre isso. Nossa vida pública não se manifesta somente na política institucional, mas no direito de fluir tranquilo em qualquer esfera. Sinto necessidade de fortalecer estratégias contínuas para reafirmar o direito de ter efetivamente uma vida pública, a começar do miudinho dos dias. Tenho adotado pequenas práticas, como voltar a ouvir muita música afro-brasileiras em casa, bem manhosamente, convidando o entorno para dançar. Tenho feito o mesmo com a comida, as roupas, as fotos, os filmes e os textos. Sem alvoroço, mas mantendo a regularidade do debate por vias menos óbvias. Quando penso em liberdade, sinto que estas práticas mais silenciosas de fortalecimento público da nossa existência coletiva são eficazes no apoio a outras esferas de representação.
Rio de Janeiro. Agência Brasil. Foto: Tânia Rêgo.
Diane Lima: democracia é ficção A execução da Marielle é um monumento necropolítico, que ganha forma e concretiza seus contornos em nossa memória, para que recordemos do poder das instituições como aquelas que ostentam o direito de dar à morte. Como um símbolo, essa morte deflagra, ainda, a ficção que é a nossa democracia e nos alerta sobre a paralisia dos nossos corpos: ainda que marchemos, nossas mãos estão atadas, e é isso que nossos gestos revelam. Quem esperamos que nos ouça? Por que esperamos por uma liderança? Vivemos a falência da política, do Direito e do corpo social. Em qual Justiça depositamos esperança, na mesma que nos mata? A frase de Margarida Maria Alves, líder camponesa da Paraíba, Nordeste brasileiro, assassinada pelo latifúndio em 1983, é ilustrativa para pensarmos como as práticas de extermínio se atualizam e como o horror se instaura como uma prática de governança. Ela nos diz: ‘medo a gente tem, mas não usa’. Quantas mais terão que morrer para que nossos corpos se libertem desse cativeiro que são os mecanismos institucionalizados de controle? É o que Marielle e Margarida, que morreram lutando, perguntavam. E que agora mais do que nunca, nos convocam a responder.
Jota Mombaça: execução não é exceção, mas efeito da regra A morte de Marielle Franco representa a continuidade do regime necropolítico que organiza a vida negra no Brasil. É, como escreveu Diane Lima, um monumento a esse regime, e remarca, portanto, o fato de que as pessoas negras deste país – e talvez isso seja verdade para muitos outros contextos – não acedem às formas de justiça, liberdade e direito à vida, que são pressupostos formais de uma sociedade dita democrática. Em outras palavras, a morte de Marielle re-apresenta a todas as pessoas negras seu cativeiro, a densidade de sua situação e a matéria bruta de que a sociedade em que estamos é feita: a violência ordenadora contra as gentes negras, indígenas, empobrecidas e dissidentes sexuais que dá textura às ficções de segurança e conforto ontológico das parcelas historicamente privilegiadas pela distribuição desigual dessa violência. Como enfatizou Cíntia Guedes, essa execução não deve ser percebida como uma exceção, mas como efeito da regra social que é o extermínio da população negra no Brasil – à qual Marielle morreu confrontando. E, por isso, sua morte representa, também, a continuidade de nossa luta contra a perpetuação do regime que a executou.
Rosana Paulino: sementes incontroláveis e fortes Creio que ninguém discute que o alvo Marielle foi escolhido a dedo, não somente porque incomodava, ao denunciar a violência policial apontando possíveis culpados. Incomodava, sobretudo, por ser mulher, negra, lésbica, da favela. Algo totalmente inaceitável para os padrões da machista, racista e classista sociedade brasileira. Mas não quero me ater à morte, e sim à vida. A vida que estoura, cresce, arrebenta as fronteiras da Maré e se torna um símbolo de luta como poucas vezes se viu no país. A tentativa de cercear, de calar mulheres negras não vai funcionar, como podem ver os que perpetraram o ato. Nós não seremos intimidadas. Me atrevo a utilizar o termo “nós” que, se não enquadra todas (infelizmente um expressivo número de mulheres negras está distante desta realidade), posso dizer que, para aquelas a quem “o recado foi dado”, ele não surtiu efeito. E não falo aqui de slogans vazios. Há 25 anos venho trabalhando a questão do que é ser negra e mulher no Brasil. Nestes dias, presenciei fatos que nunca pensei ver em vida: jovens mulheres negras, algumas quase meninas, liderando protestos de rua contra a barbárie. As balas que mataram Marielle podem, paradoxalmente, avivar o modo de se fazer política no país. Como sementes, estão frutificando rápido, incontroláveis, fortes.
Fábia Prates é jornalista com passagem por grandes veículos brasileiros. Atualmente escreve sobre temas relacionados a cultura, comportamento e comunicação corporativa.