A cana-de-açúcar foi um dos elementos centrais da colonização europeia no Caribe. Ela estimulou a escravidão e, também através da arte, a ideia de uma região colonial e idílica. Artistas contemporâneos examinam com olhares críticos o papel ambíguo do açúcar na história do Caribe.
Atelier Morales, Los Ingenios, El intrepito, 2004. Cortesia dos artistas.
Eduardo Laplante, de Los Ingenios: colección de vistas de los principales ingenios de la Isla de Cuba, 1857.
Atelier Morales, Los Ingenios, El progreso, 2004. Cortesia dos artistas.
A cana-de-açúcar colonizou e fundou o Caribe. Ela chegou na segunda viagem de Colombo, em 1493. Os primeiros engenhos de cana de que se tem notícia na região começaram a funcionar em 1506 na colônia espanhola de Santo Domingo. Os ingleses começaram a produzir açúcar em Barbados em 1627. Em 1639, os franceses fizeram o mesmo na Martinica, depois em Guadalupe. A plantação de açúcar estimulou o tráfico de escravos e o empreendimento colonial. Entre os séculos 17 e 19, viajantes europeus e pintores amadores, não raramente financiados pelos proprietários de plantações, pintaram e narraram a plantação de açúcar como protagonista de uma paisagem colonial idílica no Caribe. Uma visão pitoresca que começou a ser confrontada no século 18 nos discursos antiescravistas.
A plantação ocupou o imaginário do Caribe de um modo obsessivo. Nas primeiras décadas do século 20, as elites intelectuais caribenhas e latino-americanas se engajaram em uma busca da identidade nacional, que retornou à plantação de cana-de-açúcar para construir uma narrativa da nação. El contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), do cubano Fernando Ortiz, e Casa-Grande & Senzala (1933), do brasileiro Gilberto Freyre, são dois exemplos canônicos do ensaísmo açucareiro. Ao longo do século 20, imagens mais críticas ou conflitantes da plantação aparecem na obra pictórica de Albert Huie, na poesia de Nicolás Guillén ou na pintura de Wilfredo Lam.
As últimas décadas do século 20 e as primeiras décadas do século 21 testemunharam um renascimento das plantações de cana-de-açúcar para a produção de biocombustíveis, bem como a proliferação de debates sobre o legado colonial no Caribe. Nesse contexto, um grupo crescente de artistas caribenhos – muitas vezes em diálogo com intelectuais como Édouard Glissant, da Martinica, ou Sylvia Wynter, de Cuba – interroga o passado e o presente da plantação. Essas e esses artistas examinam os imaginários provenientes do colonialismo, exploram as possibilidades materiais do açúcar e discutem os efeitos ambientais da plantação ou as maneiras pelas quais persiste a violência do sistema açucareiro.
Los Ingenios: patrimonio a la deriva (2004), do duo de artistas cubanos Atelier Morales, é uma série de fotografias sobre as ruínas de 25 engenhos pintados pelo francês Eduardo Laplante para o livro Los Ingenios: colección de vistas de los principales ingenios de la Isla de Cuba, publicado em 1857. As aquarelas de Laplante eram uma ode à maquinaria da plantação, que aparecia rodeada por uma paisagem de rios e palmeiras.
A paleta de cores e a composição da série do Atelier Morales reproduzem o tom idílico, quase nostálgico, das imagens de Laplante, para fazer uma crítica à atual negligência com o patrimônio arquitetônico em Cuba.
Em um horizonte semelhante, Nikolai Noel, de Trinidad e Tobago, usou açúcar caramelizado para desenhar uma figura humana em uma galeria da Universidade Virginia Commonwealth, The Missing, The Murdered, The Maimed e The Manhandled (Os desaparecidos, os assassinados, os mutilados e os maltratados, 2011). A mancha de açúcar do desenho de Noel desconcerta por ser ambígua e difusa. Por um lado, ela se opõe aos imaginários pitorescos da plantação e mancha a imagem do Caribe como um espaço idílico. Por outro lado, remete à experiência caribenha como uma experiência manchada pela escravidão e pela violência da plantação.
Porém, mais do que discutir o passado, a arte caribenha sobre a plantação propõe também um diálogo coletivo sobre o presente. O projeto Machinique (2001), do martinicano Herve Beuze, leva o nome da combinação entre máquina e Martinica. Beuze constrói estruturas metálicas na forma de mapa da Martinica e as enche com bagaço de cana, colocando-as, em seguida, em parques ou destilarias antigas onde as peças interrogam o ambiente. Além de enfatizar a ligação entre a plantação e a história da ilha, as estruturas de Beuze apontam para os efeitos da produção de açúcar no meio ambiente: o que antes era a natureza, agora permanece como uma paisagem deteriorada.
Herve Beuze, Machinique, 2007. Cortesia do artista.
O jamaicano Charles Campbell também usa o bagaço para exemplificar a destruição ambiental. O óleo de Bagasse (2009), pintado em grande escala e em preto e branco, é um leito de resíduos de cana visto de cima. A perspectiva dá a impressão de caos.
Discutir a plantação significa, para alguns desses artistas, “recriar” a plantação ou “senti-la”, razão pela qual a instalação é uma linguagem recorrente. Untitled (Havana, 2000), da cubana Tania Bruguera, é uma espécie de túnel coberto com bagaço de cana: no centro do túnel, um projetor apresenta imagens de Fidel Castro. Opressão, medo e temor são algumas das sensações que a espectadora ou o espectador experimenta ao percorrer a obra. Em Sugar/Bittersweet (2010), a também cubana María Magdalena Campos Pons constrói discos com açúcar marrom e refinado, que ela então insere em lanças de ferro. Colocadas no espaço da galeria, as lanças imitam um canavial que a espectadora ou o espectador habita. Ao redor das lanças, Campos Pons projetou um vídeo com imagens de seus parentes, moradores de uma antiga plantação. O gesto de Campos-Pons, que é descendente de nigerianos escravizados e de trabalhadores asiáticos, introduz um relato pessoal na história oficial da plantação de açúcar.
O corpo que trabalha a plantação é explorado pelo dominicano David Pérez na performance Trata (2005). Perez contrata um trabalhador haitiano para cortar 500 caules de cana, que são transportados para a Praça de Espanha, no centro turístico de Santo Domingo. Uma vez lá, o artista começa a consumir as canas e, depois de várias horas, sofre um ataque de hipoglicemia. Trata coloca a plantação e o trabalho haitiano no centro da cidade, à vista de turistas e moradores locais. Da mesma forma que Pérez consome cana, haitianos e dominicanos são consumidos pela indústria açucareira e agora pela indústria do turismo.
Luis Vásquez, But the Real Ones, Just Like You, Just Like Me (2020). Cortesia do artista.
Também Luis Vásquez La Roche, de Trinidad e Tobago, rastreia diferentes momentos de exploração da população caribenha na performance But the Real Ones, Just Like You, Just Like Me (2020). Na peça, Vásquez escova um tênis AirJordan 1 moldado em açúcar. O tênis se desfaz em pedaços e os restos afiados machucam suas mãos. Enquanto o açúcar alude ao passado da plantação, o AirJordan 1 critica uma sociedade contemporânea regida pelas leis do consumo.
Em uma era de protestos massivos pelos direitos das pessoas afrodescendentes e de apostas em uma diversificação das histórias na arte, a plantação de açúcar se repete na produção de artistas do Sul Global, como os brasileiros Ayrson Heráclito, Caetano Dias, Tiago Sant’ana, Natalia Marques e Gê Viana, o colombiano Fabio Melecio, e Anne Fontaine, da Ilha de Reunião. No caso do Caribe, interrogar a plantação e seu legado significa, em última análise, imaginar outro futuro para a região: como podem ser criados outros arquivos das plantações – arquivos que nomeiem sua violência e seus silêncios? Existe um Caribe além da plantação? É possível fugir da plantação?
Nohora Arrieta Fernández é doutora em Literatura Latino-americana e Estudos Culturais, pesquisadora em pós-doutorado na UCLA e cofundadora da plataforma Mare Projects. Atualmente pesquisa e escreve sobre plantações de açúcar e arte contemporânea no Brasil e no Caribe.
Tradução: Cláudio Andrade