O pesquisador brasileiro, mentor do Projeto Afro, fala sobre as origens da plataforma, os desafios de lançar um site em ano de pandemia e a importância da pesquisa sobre arte-brasileira no país.
Ciclo de encontros "Resistência negra em movimento": diálogos sobre arte e sociedade, São Paulo. Foto: Carol de Freitas.
A artista visual Juliana Santos em "A mão afro-brasileira 30 anos depois", 2019. Foto: Karina Bacci.
"Nos braços da mãe Nanã o amanhã está seguro", obra de Renata Felinto para o projeto BIRICO, 2020. Foto: Divulgação.
C&AL: Quando e como surgiu a ideia de criar o Projeto Afro? O que você pretende com essa iniciativa?
DA: O Projeto Afro nasceu do desejo de reunir, em um só local, todo um conteúdo voltado para a discussão de temas da arte afro-brasileira, com foco nos trabalhos de artistas negros/as/es, tornando esses nomes ainda mais conhecidos por parte do público – seja este ligado às artes ou não. Foi há três anos que o Projeto Afro começou a tomar forma, quando fui delineando o esboço do que hoje é a plataforma. Em 2018, coloquei esse conteúdo nas redes sociais e comecei a publicar um pouco do que vinha pesquisando. No ano seguinte, lancei uma chamada pública para receber portfólios de artistas emergentes de todas as regiões do país. Recebi 157 arquivos até o lançamento do site em junho de 2020. Foi quando entendi que não conseguiria encontrar tais artistas nos livros, catálogos e textos que já conhecia. Era imprescindível incluí-los no Projeto, colocando-os ao lado de artistas de décadas e séculos passados, sugerindo um paralelo entre narrativas, temas, técnicas e datas.
O projeto do site, que vem sendo construído há um ano, é realizado de forma independente. Esse processo longo foi extremamente importante para criar uma plataforma de fácil acesso e navegabilidade. Após seu lançamento, um grande número de artistas quis fazer parte dessa ação coletiva. Esse retorno é muito significativo. Atualmente, estou organizando os novos conteúdos que não paro de receber, ampliando o mapeamento inicial com novos nomes de todas as regiões do país.
C&AL: O site foi lançado em plena pandemia. Como foi feito o lançamento e qual a importância da ação Birico, em parceria com o artista Rafael Escobar, que ultrapassa a internet?
DA: No início de 2020, estipulei como prazo de lançamento do site o mês de junho. Naquele momento, apesar das primeiras notícias sobre o novo coronavírus chegarem à mídia, não tínhamos a dimensão do que esta doença iria alcançar. Planejei o lançamento para o dia 21 de junho em homenagem ao nascimento do advogado, jornalista e escritor abolicionista Luís Gama (1830-1882), que exerceu papel fundamental na luta pelo fim da escravidão. Atrelado a uma agenda que costumo citar como um “novo” levante da luta antirracista, que tomou proporções maiores no mundo todo com a morte do estadunidense George Floyd, acarretando nos protestos realizados também no Brasil, em importantes mobilizações nos canais digitais e maior atenção da mídia ao tema, o Projeto Afro emerge em um cenário de violência histórica que se repete também nas artes, local de disputa simbólica, como explica o curador Hélio Menezes.
O lançamento aconteceu online e teve 5.588 visualizações de página do site nas primeiras 24 horas de conteúdo no ar. Assim como outros assuntos que já abordamos no site do Projeto Afro, o Birico foi uma ação coletiva proposta por diversos artistas, alguns deles presentes no mapeamento do Projeto. A ação foi articulada pelo artista Raphael Escobar e outros/as/es, que somaram forças para ajudar projetos sociais que atuam na Cracolândia, região de grande vulnerabilidade social no centro da cidade de São Paulo.
C&AL: Além de apresentar verbetes sobre artistas do passado e do presente de todas as regiões do Brasil, o que mais se pode encontrar no site do Projeto Afro?
DA: Além dos 148 artistas publicados até o momento, cada visitante pode navegar por diferentes aspectos dessa produção. A apresentação de artistas se dá por ordem alfabética, pela técnica, ano ou local de nascimento. Há também textos no editorial, artigos de opinião, reflexão, entrevistas e matérias que tratam de diversas questões do meu interesse e de pesquisadores que têm colaborado com o Projeto.
Artistas negros/as/es sempre existiram no Brasil, o que falta são mais estudos que permitam novas descobertas.
Clicando em publicações, pode-se acessar algumas pesquisas acadêmicas. Na agenda, pode-se ver e participar dos eventos que o Projeto seleciona, como cursos, editais, exposições, debates. Semanalmente, a seção Artista da Semana destaca um nome na página inicial do site. O Projeto Afro mantém ações que vão além do ambiente virtual, tais como a parceria com o MAM São Paulo na realização do debate A mão afro-brasileira: 30 anos depois, em 2019, que teve a participação de Hélio Menezes, Márcio Farias e Juliana dos Santos. O Projeto também apoiou a realização do ciclo dos encontros Resistência negra em movimento: diálogos sobre arte e sociedade, no Sesc Santana em São Paulo, dos quais participamos eu, Leonardo Fabri e Wallesandra Souza Rodrigues.
C&AL: Você vê diferenças entre o conceito de arte afro-brasileira e artes negras?
DA: Um conceito dinâmico ainda em constante discussão, arte afro-brasileira ingressou de vez na academia como tema de mestrados e doutorados, e já é um campo de pesquisa oficial por todo o país. Tendo a concordar com as pesquisadoras Dilma de Melo Silva e Maria Cecília Felix Calaça, para quem esses termos são sinônimos. As primeiras discussões sobre a questão surgiram com o médico legista e antropólogo racista Nina Rodrigues, no inicio do século 20, seguido de outros pensadores como Arthur Ramos e Clarival do Prado Valladares. Apesar da polêmica em torno do autor, Rodrigues apresentou em 1904 o artigo intitulado As bellas-artes nos colonos pretos no Brazil. Sobretudo com esse texto, o autor passou a ser reconhecido como um dos pioneiros a registrar o termo arte afro-brasileira, relacionando-o à dimensão do sagrado.
C&AL: Como você explicaria a o surgimento de tantos jovens artistas negras/negros/negres contemporâneas?
DA: Artistas negros/as/es sempre existiram no Brasil, o que falta são mais estudos que permitam novas descobertas. No campo da pesquisa, vários nomes são referências e seus escritos servem de base teórica para a construção do Projeto Afro. Cito aqui alguns: Alexandre Araújo Bispo, Luciara Ribeiro, Hélio Menezes, Roberto Conduru, Igor Simões, Janaína Barros, Diane Lima, Renato Araújo, Alecsandra Matias de Oliveira etc.
Com 148 artistas no Projeto Afro até o momento, é difícil não perceber toda a potência dessa produção de autoria negra no país, que foi impulsionada nos últimos anos por mostras, eventos e cursos oferecidos por instituições culturais. Estes, por sua vez, realizam as mais diversas pesquisas de temas, exploram suportes variados e multiplicam as possibilidades narrativas. É uma produção intensa e pulsante, conduzida por artistas, entre os quais alguns nomes representados por galerias comerciais. Na outra ponta, artistas emergentes vêm logrando sucesso, construindo uma nova cena independente, se articulando coletivamente, pesquisando e produzindo. São novos agentes que construirão uma outra história da arte brasileira, mostrando sua força criativa, original e particular.
Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.