Caribe

Introdução ao manual do empregado

Baseada em diálogos entre as organizações TEOR/éTica, Beta-Local e t-e-e, Introducción al manual del empleade (Introdução ao manual do empregado) é uma publicação que tem o propósito de compartilhar e pensar coletivamente sobre os direitos trabalhistas que podemos reivindicar, o tipo de trabalhadores que queremos ser, e como conseguir isso. Conversamos com Paula Piedra, Nicolás Pradilla e Sofía Gallisá Muriente sobre como utilizar esse antimanual.

C& América Latina: Este manual será também útil para artistas da América Central que vivem nos Estados Unidos ou na Europa? Por quê?

Paula: Acreditamos que será útil, pois levanta uma série de questões sobre como lidar com o trabalho cultural e, a partir daí, adquirir ferramentas e estratégias para encontrar formas dignas de encarar o trabalho feito nas áreas artísticas e culturais em determinados contextos.

Sofía: No final das contas, faz tempo que as economias da arte foram globalizadas, bem como os sistemas de valor e visibilidade. Organizações como Beta-Local e TEOR/éTica não atuariam no Caribe e na América Central da forma que fazem atualmente se não fossem financiamentos privados de instituições estadunidenses e europeias. Na publicação, discutimos sobre alguns dos conflitos e oportunidades que isso gera. Ao mesmo tempo, um dos nossos posicionamentos fundamentais sobre o trabalho cultural é que ele deve estar ancorado em seu próprio contexto, respondendo a nossas realidades materiais, sociopolíticas, etc. Essa reflexão deveria estar presente para artistas da nossa região, onde quer possam ir trabalhar ou estudar, como uma ferramenta de resistência diante da colonização dos imaginários de produção cultural do Norte Global.

Nico: Por outro lado, mostrar que as economias da arte estão globalizadas implica em reconhecer que o cenário artístico foi moldado pelos imaginários do capital transnacional e suas lógicas de fragmentação, mobilidade e mercadoria. Isso permeia consideravelmente os discursos que submetem o trabalho cultural – que sempre inclui uma diversidade enorme de significados locais – a uma lógica transacional centrada na circulação de capitais simbólicos e econômicos. Esse é um dos focos principais da discussão sustentada ao longo dos quase cinco anos de elaboração desta publicação. Trata-se de lógicas que, em sua maioria, foram disseminadas no Sul a partir das metrópoles coloniais.

C&AL: No contexto da América Central e do Caribe, qual sua visão de futuro de uma vida cultural sustentável e justa? Devemos reformar as instituições ou criar mais organizações independentes? Ou fazer outras coisas?

Paula: Devemos almejar a construção de diversas estruturas que abriguem instituições tanto públicas quanto privadas que possibilitem o surgimento de outras organizações independentes, bem como de projetos de menor escala, muitas vezes efêmeros. É importante conseguir maior colaboração e circulação de recursos, estabelecendo também mecanismos de diálogo e contribuições com setores mais comerciais. Mais do que reformar as instituições, temos que nos organizar para continuar defendendo sua existência (quando elas existem). Em alguns casos, precisamos criá-las, exigir que o Estado assuma sua responsabilidade de garantir o acesso à cultura e à educação. Também é um desafio aprender a dialogar com públicos diversos e buscar conexões com setores especializados em arte.

Sofía: Ainda é importante fortalecer os espaços de diálogo entre trabalhadores culturais e resistir à disputa por recursos e audiências, a fim de impulsionar conjuntamente os padrões de compensação, por exemplo, e defender o financiamento público da cultura.

Nico: É essencial hiperlocalizar as práticas. Estabelecer vínculos mais estreitos com as comunidades nas quais os projetos estão inseridos e, a partir daí, contribuir para narrar e pensar os problemas específicos de cada espaço como parte de um diálogo constante com os trabalhadores culturais, mas também com a vizinhança e a pessoas de passagem. Nesse sentido, há pontos focais que importam a todos, e que se somam ao debate sobre um trabalho digno: soberania hídrica e agroalimentar, biodiversidade, deslocamento forçado e desigualdade. Isso tudo pensado sob uma perspectiva de justiça epistêmica, reciprocidade e especificidade, contestando a persistência de práticas coloniais e patriarcais.

Três excertos da Introdução ao manual do empregado.

Catolicismo laboral(1)

Relação com o trabalho remunerado baseada na culpa e em um sentido desmedido de responsabilidade (o que se deve fazer, o que vão dizer). Uma série de ideias fixas instauradas na estrutura de nossas sociedades a fim de impor modelos de produção, controle e sucesso. Tudo o que nos impede de questionar por que fazemos o que fazemos e buscar modelos e maneiras de nos libertarmos dessas ideias preconcebidas a que estamos submetidos.

Autoexploração

Lançar-se na dinâmica individualista da produção. O trabalho autônomo, sob este ponto de vista, é o oposto do trabalho coletivo, pois, diferente deste, gera condições precárias de subsistência baseadas em uma lógica individual de acumulação não redistributiva.

Trabalhar para um empregador abusivo internalizado.

Emancipação

Emancipação como luta por outras formas de fazer e de estar no mundo. Uma interrupção transitória de uma ordem estabelecida. Uma territorialização dos afetos e uma forma de abertura. Não estaremos emancipados até que todos estejam.

Che Melendes disse que, em Porto Rico, na ausência de uma infraestrutura concreta, trabalhadores culturais tiveram que criar uma super-estrutura simbólica que os sustentasse (2). Essa é sua versão do trabalho cultural emancipador. Audre Lorde disse: “Na ausência de uma comunidade, não há libertação, apenas o armistício mais vulnerável e temporário entre um indivíduo e sua opressão.”(3) A emancipação é sempre negociada quando se trabalha em uma colônia, em uma estrutura sem fins lucrativos ou em qualquer outro sistema que não nos pertence, e, como tantas outras coisas, o negociado é sempre insuficiente.

Um exemplo disso é a proposição de um modelo de direção coletiva funcionando dentro de uma fundação cujo organograma – tradicionalmente – contempla a figura da direção geral nomeada por uma junta administrativa, e, “abaixo” dela, o resto do pessoal. É uma hierarquia que repete uma lógica de poder e leva à invisibilização das pessoas que tornam possível a maior parte do trabalho. Ainda que a codireção seja um modelo experimental, sempre à prova, o objetivo principal é manter vivo o questionamento desse poder e o desejo de encontrar formas de se relacionar entre si e com os outros.

Para mais informação visitar teoretica.org.

Sobre as organizações:

TEOR/éTica
TEOR/éTica é uma fundação sem fins lucrativos dedicada à arte e ao pensamento, radicada em San José, Costa Rica.
www.teoretica.org
@teoretica

Beta-Local
Beta-Local é uma organização sem fins lucrativos voltada a trabalhadores culturais e fundada em 2009 em San Juan, Porto Rico, pela artista Beatriz Santiago Muñoz, a curadora Michy Marxuach e o artista Tony Cruz.
www.betalocal.org
@beta_local

t-e-e
taller de ediciones económicas
O taller de ediciones económicas é uma editora sem fins lucrativos fundada em 2010 por Gabriela Castañeda e Nicolás Pradilla em Guadalajara, México.
www.t-e-e.org
@Tallerdeedicioneseconomicas

 

1. Termo utilizado por Gilberto González, amigo e curador de Tenerife, Ilhas Canárias.

2. Joserramón Melendes é um escritor e editor porto-riquenho, fundador da editora queAse, na qual publicou inúmeros livros de artistas e escritores porto-riquenhos de vanguarda. Entrevista com Esteban Valdés e Sofía Gallisá Muriente no Burger King de Río Piedras, 2019.

3. Audre Lorde (1934, Nova York – 1992, Santa Cruz, Ilhas Virgens) foi uma intelectual e poeta lésbica afrocaribenha fundamental para o pensamento feminista Negro devido a sua análise interseccional mordaz. Audre Lorde, The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House, em collectiveliberation.org/wp-content/uploads/2013/01/Lorde_The_Masters_Tools.pdf. Tradução nossa.

 

Tradução: Renata Ribeiro da Silva

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