Centrada na canção de ninar Dodo titit, a exposição indaga como indivíduos deslocados mantêm conexões com sua terra natal através de sua relação com o território. Tessa Mars cria cenas surreais inspiradas no imaginário do vodu, incluindo seres híbridos que representam orientação e conhecimento ancestrais.
Tessa Mars, Répétition générale - Rituels de novembre (Ensaio geral - Rituais de novembro), acrílico sobre papel, dimensões variáveis, 2017. Foto: Erik López
Tessa Mars, Nou la ansanm (Estamos juntos), acrílico sobre tela, 4 pés x 8 pés, 2019. Foto: Erik López
Tessa Mars, Une chanson pour une île en feu (Uma canção para uma ilha em chamas), 2024. Foto: Erik López
Tessa Mars, Pitit Ayida (Filha de Ayida), acrílico sobre tela, 150 cm x 180 cm, 2023. Foto: Deniz Güzel
No vodu haitiano, as pessoas iniciadas geralmente recebem conhecimento ancestral durante o sono. Esse processo tem o nome de Nan Dòmi, que é o título da exposição individual de Tessa Mars na Casa del Lago, na Cidade do México, cuja curadoria é de Eva Posas.
Tessa Mars é uma artista haitiana que explora a dinâmica da espiritualidade, da identidade e da migração no Caribe, desconstruindo narrativas dominantes centradas no Ocidente sobre o Haiti e o Caribe. Mars se interessa pela experiência migratória e procura “localizar um ‘espaço espiritual’ da migração, tendo como base nossa relação com a terra e a ideia de pertencimento”, fazendo com que questionemos a ideia sobre como habitar a terra com aqueles que estavam lá antes de nós.
Em seus trabalhos na exposição, cujo título completo é Nan Dòmi: las canciones que cantamos, ela liga a experiência migratória à espiritualidade, questionando noções de sonhos, espiritualidade e migração. A exposição foi desenvolvida em torno da canção de ninar haitiana Dodo titit, cantada pelas mães no Haiti para acalmar seus filhos. A curadora elaborou, assim, uma cenografia intimista em um espaço que havia sido um armazém. Ao entrar no espaço pouco iluminado e semelhante a um casulo, a serialidade das obras leva você através de uma espécie de caminhada ritualística, enquanto uma gravação de vozes distorcidas cantando a canção de ninar é tocada em loop.
Une vision de la paix, de l'harmonie et de la bonne intelligence (Uma visão de paz, harmonia e boa inteligência), acrílico sobre tela, 190 cm x 190 cm, 2020. Foto: Erik López
Isso cria uma atmosfera de ternura, ao mesmo tempo em que revela uma sutil tensão no espaço, refletida nas obras expostas, em que corpos enraizados na terra parecem simultaneamente protegidos, maternalmente acolhidos e aprisionados. Diante dessas obras, podemos nor perguntar: será a mãe terra, que nutre e protege, ou a terra devoradora, que sufoca e absorve, da qual os personagens estão tentando escapar? Será que estas raízes evocam apego à terra de origem durante a experiência migratória ou conexão com os habitantes que lá estavam antes de nós?
Sentimos essa tensão em A Song for an Island on Fire (Uma canção para uma ilha em chamas), que retrata um homem deitado em um buraco, cercado por três cabeças que emergem a seu lado. A aparente calma no rosto do personagem contrasta com a atmosfera sufocante da tela, acentuada por tons quentes e alaranjados que evocam um rio de fogo. As mãos levantadas do personagem, em um gesto que parece ser uma oração ou um pedido, nos levam a indagar como essa figura aparentemente frágil pode estar tão tranquila nesse ambiente hostil e ameaçador. O título da pintura poderia facilmente se referir à situação sociopolítica do Haiti, onde o turbilhão da insegurança dá a impressão de estar navegando em um mar de fogo. A curadora Eva Posas quis acentuar o contraste entre a suposta segurança emocional que encontramos em nossa terra natal, onde estão nossas raízes, e a realidade brutal da migração.
Longe de ser uma simples escolha pessoal, a migração é hoje uma resposta às pressões sociopolíticas e econômicas que pesam sobre os países da Maioria Global. Em busca de uma vida melhor, pessoas migrantes frequentemente permanecem ligadas à sua terra natal. A evocação das raízes no trabalho de Tessa ilustra tanto o apego quanto o desenraizamento experimentado pelo indivíduo deslocado. Os corpos que se enraízam na terra e as raízes que se envolvem em torno dos personagens nos convidam a refletir sobre a ligação entre as pessoas e seu lar. Indivíduos viajam com sua bagagem espiritual, que os ajudam a atravessar esses novos territórios familiares e a se recarregar. Essa bagagem espiritual são as conexões invisíveis que os ligam às suas origens.
Recorrente na obra de Tessa Mars, o imaginário da flora e da fauna é alimentado pelo vodu. Pinturas como Pitit Ayida – Daughter of Ayida (Pitit Ayida – Filha de Aidá) e One Shared Breath (A Name Shared) (Uma respiração compartilhada – Um nome compartilhado), ambas de 2023, mostram seres híbridos, mulheres-serpentes rastejando e um outro personagem que se enraíza na terra e descansa, parecendo sereno, como se estivesse protegido pelas mulheres que rastejam ao seu redor. No vodu, Ayida Wedo (Aidá Uedó) é um loá representado pela serpente, que, para se manifestar, monta seus seguidores, fazendo-os rastejar. Essas figuras femininas podem simbolizar a orientação e o conhecimento dos ancestrais.
Ao questionar a migração através de uma abordagem espiritual e baseada na identidade, Tessa Mars pergunta: como habitamos a terra com aqueles que estavam lá antes de nós? Enraizado na cultura haitiana, seu trabalho assume uma dimensão universal ao abordar temas como pertencimento, identidade e memória coletiva. Através de uma estética inspirada no vodu e no imaginário caribenho, Mars nos faz refletir sobre nossa ligação com a terra, a preservação dos laços ancestrais e a força espiritual que ampara os indivíduos em sua experiência migratória.
Tessa Mars, Nan Dòmi: las canciones que cantamos esteve exposta na Casa del Lago UNAM, na Cidade do México, México, até 17 de novembro de 2024.
Ervenshy Hugo Jean Louis escreve sobre arte e estuda História da Arte e Arqueologia na Universidade do Estado do Haiti. Ele foi participante de uma Oficina de Redação Crítica da C& em colaboração com CCI.
Tradução: Marie Leão