Machada aborda os arranjos da multiplicidade identitária brasileira e a invisibilização LGBTQIA+ na historicidade pré-colonial. Com seu trabalho, a artista propõe uma desestabilização do imaginário coletivo associado ao amor entre femininos.
Vista panorâmica da instalação fotográfica Antes de você me amar, ela já estava me amando. 6º andar da CCMQ, 2025. Cortesia da artista.
Apesar de sua brevidade, um “estalo” sempre envolve uma relação entre som, espaço e corpos. Estalo, é também o título escolhido para a 14ª Bienal do Mercosul, que funciona como “um convite para habitar o movimento e a transformação de um estado para outro”, como descrevem os curadores. Formulada no arranjo de 77 artistas, a Bienal espraia-se por dezoito espaços da cidade de Porto Alegre. Laryssa Machada é uma das participantes, integrando o núcleo “um estalo que parece um asterisco, bem esparramado”, no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Aí apresenta a artista os primeiros resultados do projeto Antes de você me amar, ela já estava me amando (2022-presente), atualmente materializado por meio de um livro de artista, fotografias digitais e analógicas.
Nascida em Porto Alegre em 1993 e vivendo entre Rio de Janeiro e Salvador, Laryssa se encontrou comigo no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab) na capital baiana, para falarmos de seu trabalho. Refletimos sobre os arranjos da presença indígena na história da arte, as alianças com artistas negres e a crescente proliferação de mostras que buscam repensar os rumos do sistema da arte — com a revisão de rótulos historicamente impostos a artistas antes enquadrades como produtores de arte “naïf” ou “popular”.
Esquerda: Da série Antes de você me amar, ela já estava me amando (2022-presente). Fotografia analógica, 2024. Direita: Antes de você me amar, ela já estava me amando. Livro de artista. Cometa impressos, 2024. Cortesia da artista.
Essa discussão inevitavelmente nos leva à complexidade da identidade brasileira e à invisibilização secular de práticas e presenças. Concluímos que talvez o maior desafio esteja na própria linguagem: nos faltam, ainda hoje, termos que dêem conta da radical diversidade do que o Brasil tem produzido fora das margens do cânone. Prosseguindo àquele encontro, tivemos, ainda, duas longas videochamadas, antes e depois da abertura da Bienal. Conversamos sobre afetos, disputas de territórios, plasticidade e sobre a recepção de imagens que ainda não tinham sido expostas, especialmente em um evento após as enchentes de 2024.
Sonhado em 2018, as tomadas do seu projeto foram realizadas a partir de 2022 na Baía de Todos os Santos (Bahia), na Baía de São Marcos (Maranhão), na Baía de Guanabara (Rio de Janeiro) e no rio Negro (Amazonas). Elas se dilatam como um grande projeto de vida. Um dos disparadores iconográfico-documentais que abrem o livro – que não está na exibição – é a recuperação do trecho de uma descrição colonial das agências nas terras invadidas, feita por Pero Gândavo, ex-secretário do Arquivo Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal, por volta de 1570.
De modo que a narrativa principal do livro, como da trama exibida, gira em torno de Yaçã e Inti, guerreiras que vão se reencontrando, em diferentes tempos-espaços da urbanização. Em 2024, após quatro séculos, elas se reencontram ao compartilharem uma fonte na Floresta da Tijuca, enclave de mata esse que, na realidade, só existe por conta de uma política imperial de reflorestamento após o desmatamento decorrente das plantations.
Com tais imagens, consideradas imagens-rito, Laryssa Machada buscou ressaltar a urgência de “reflorestar o imaginário coletivo, onde nossos afetos e bem-viver sejam possíveis e plenos”. E afirma que, “para além do impedimento de exercer suas ‘culturas afetivas’, o acesso ao território e a conexão com a natureza foram – e são – cada vez mais reduzidos pela lógica da urbanização”.
A feitura das imagens-rito encontra amparo na incorporação de três elementos, considerados essenciais pela artista, para performá-las: presença, fé e coletividade. Fotos que, vultuosas, transbordam os tempos do clique e o gesto da captura/tomada. Assim, a artista cria ficções a partir de precedentes históricos e da atualidade de casais contemporâneos, formados por amigas e conhecidas.
Considero que uma das grandes sacadas do projeto Antes de você me amar, ela já estava me amando está em seu potencial como política de afirmação de memórias dissidentes. Também nos faz questionar quantas artistas lésbicas, travestis, não-bináries, posicionadas como guerreiras, estão acervadas nas instituições museológicas, se é que estão presentes nos variados acervos públicos… Laryssa Machada nos fornece vislumbres do triunfo perante as expectativas sociais cis-hetero-patriarcais, que visam relegar corpas LGBTQIA+ ao completo esquecimento.
Estalo, 14ª Bienal do Mercosul, está sendo realizada entre 27 de março e 1 de junho de 2025 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Rogério Felix (1997, Salvador/BR) é pesquisadore e curadore independente. Bacharel em Museologia, cursa o mestrado em Artes Visuais, ambos pela Universidade Federal da Bahia. Recentemente, tem investigado histórias de exposições de artes africanas em instituições museológicas estatais, situadas em Salvador. Se interessa pelas relações entre cultura (i)material e arte contemporânea, operando através da documentação, da ação cultural-educativa, da crítica, além de organizar acervos e exibições. Atualmente, colabora como museólogue no Museu Comunitário Mãe Mirinha de Portão, situado na cidade de Lauro de Freitas, onde organizou a mostra Caminhos das Memórias: cem anos de Mãe Mirinha de Portão (2024).