Caso Jair Bolsonaro se torne o próximo presidente do Brasil, o setor da cultura estará em perigo.
Mulheres contra Bolsonaro, Belo Horizonte. Foto: Fotos: Luiz Rocha / Mídia NINJA.
Nas circunstâncias extremamente acaloradas que antecedem as eleições, o cenário cultural brasileiro declara guerra ao populismo de direita representado por Jair Bolsonaro. Protestos, manifestações, passeatas e ações artísticas vão sendo mobilizados através das redes sociais. Muitos artistas e profissionais da cultura apontam que a liberdade de expressão artística e a democracia em si estão em perigo. Tudo aquilo por que se lutou na ditadura militar, os ideais pelos quais muitos sacrificaram suas vidas, parecem estar em risco de repente. “Por isso um homem como Bolsonaro é mais perigoso no Brasil do que um Trump nos Estados Unidos. Aqui não temos uma democracia de verdade”, diz o escritor Luiz Ruffato no jornal colombiano El Espectador.
A queda contínua dos incentivos culturais começou em 2013, quando a população brasileira foi às ruas para protestar contra o aumento das passagens de ônibus. Seguiu-se o impeachment de Dilma Rousseff, que acabou resultando num presidente que não fez outra coisa a não ser salvar sua pele das acusações de corrupção. O novo gabinete de Michel Temer é composto por 100% de homens idosos e brancos.
Vilipendiados socialmente se tornaram protagonistas
Nestes anos todos, também acabaram por se desenvolver novos discursos. O racismo sempre foi desprezado no país com a alegação de que no Brasil todo mundo tem origem mestiça. Mas eis que então os ativistas e produtores culturais afro-brasileiros se apresentaram e desafiaram as elites “brancas” ao confronto. Também a cena LGBT se apresentou em público de modo mais autoconfiante e exigiu seus direitos. Grupos vilipendiados socialmente, como prostitutas, migrantes ou sem-teto, se tornaram protagonistas de ações artísticas. E os artistas passaram a ser agentes políticos e sociais.
Sobretudo um grupo, porém, que de um modo geral mesmo entre intelectuais apenas desempenhava um papel tradicional no Brasil, começou a se destacar – o das mulheres. O feminismo – e marcadamente o feminismo afro-brasileiro ou indígena – se tornou um movimento cada vez mais forte diante das atitudes misóginas de um Temer ou de um Bolsonaro. Nomes como os das artistas performáticas Michelle Mattuizzi, Anita Ekman, Christina Takuá ou Jota Mombaza são representantes de uma geração de artistas ativistas que oferecem resistência ao machismo brasileiro.
Com o corte dos incentivos culturais por parte do setor público, desenvolveu-se ao mesmo tempo uma corrente que reavalia a arte e a cultura de outro modo. Representantes de grupos religiosos querem determinar o que é boa arte e o que é arte apresentável. A arte se tornou cada vez mais a peteca nas mãos de formadores de opinião, sobretudo de agrupamentos evangélicos ou de outras religiões. “Campanhas populistas de direita tentam questionar qualquer arte e as instituições que a representam, e depreciá-las como parasitas do sistema”, diz Jochen Volz, diretor da Pinacoteca de São Paulo.
O que se vê é uma verdadeira perseguição a tudo que não corresponda a um certo ideal brasileiro de estética, moral e bons costumes. O Goethe-Institut do Brasil foi acusado várias vezes, nos últimos dois anos, de apresentar performances ou ações de grafite que promoveriam a “lesão corporal”, a “blasfêmia” ou a “pedofilia”. A Constituição brasileira, que é uma das mais modernas, mais democráticas e mais libertárias do mundo, não consegue impedir que tribunais e juízes se deixem influenciar pelas tendências religiosas reacionárias.
Wagner Schwartz, conhecido performer brasileiro, cuja peça La Bête provocou, no Goethe-Institut de Salvador e no Museu de Arte Moderna de São Paulo, numerosos shitstorms, manifestações e até mesmo ataques físicos, porque uma criança tocou o artista nu, deixou o país por um ano devido ao medo – uma vez que recebeu inclusive ameaças de morte. Schwartz quase já não encontra mais teatros ou museus no Brasil que se mostrem dispostos a apresentar suas performances. Em São Paulo, será o Goethe-Institut que exibirá sua nova peça.
Também a situação da Bienal de São Paulo nos últimos seis anos é bem interessante: os curadores das Bienais de 2014 e 2016 reagiram ofensivamente ao crescente engajamento político da população. A Bienal que abriu suas portas há dois meses, ao contrário, apresenta uma assinatura bem diferente. Gabriel Pérez-Barreiro coloca o artista no centro e quer, com sua exposição, tornar novamente a arte como arte o centro das atrações. A exposição se apresenta marcadamente apolítica, em meio a uma cidade que pulsa política (e artisticamente).
Mas seria exagerado afirmar que todas as instituições culturais se curvaram aos ditames do público e suas censuras. Grandes casas como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), o Instituto Tomie Ohtake, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), o Itaú Cultural ou até mesmo a Pinacoteca apresentam temas como a sexualidade, a escravidão ou as mulheres. De qualquer modo, também algumas delas já começaram a tomar medidas de segurança, e a apresentar placas com limitação de faixa etária. Também o Sistema-S (Serviço Social do Comércio, SESC, e Serviço Social da Indústria, SESI), instituições culturais comunitárias que são financiadas por percentuais dos tributos da economia, tentam se voltar contra essa nova ordem, ainda que de modo cada vez menos engajado. Bolsonaro, porém, já anunciou que mandará fechar essas instituições imediatamente, para usar os impostos para coisas mais importantes do que a cultura. Com isso, o setor mais rico da cultura no Brasil seria assassinado de um só golpe.
Uma situação semelhante à da ditadura
Mas eles existem – essa autocensura e o medo das consequências, quando alguém se apropria de um tema “imoral”. Tanto mais necessárias se tornam a coragem e a persistência para resistir ao terror. Antonio Araújo, diretor do mais importante festival internacional de teatro do Brasil em São Paulo (MITsp), expressa-o de modo claro: “Todos nós do setor cultural temos medo de que tudo que é vanguardista na arte seja proibido.”
A falência da cultura pública anda de mãos dadas com uma sociedade civil artística cada vez mais ativa, que por sua vez desperta comportamentos racistas, antifeministas, homo e transfóbicos de extrema direita. Isso resulta em um conflito entre dois grupos polarizados, que por fim poderia acabar em uma guerra civil, caso Bolsonaro vença, conforme a opinião de Wagner Schwartz.
Caso Bolsonaro de fato seja o vencedor das eleições, poderia ocorrer uma implosão político-cultural, de feição semelhante à de uma ditadura, cuja lembrança ainda permanece bem viva no Brasil. Mais tardar nesse momento, seria chegada a hora de os países do mundo inteiro, que ainda têm na democracia e na liberdade artística seus valores fundamentais, intervirem e assumirem posição a favor do corajoso e inabalável cenário artístico brasileiro.
Katharina von Ruckteschell-Katte é diretora regional para a América do Sul e diretora do Instituto Goethe de São Paulo.
Traduzido do alemão por Marcelo Backes.
Este ensaio foi originalmente publicado pelo jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung.