Exposição na Pinacoteca de São Paulo

Rosana Paulino: a sutura da história

“Rosana Paulino: a costura da memória” reúne 140 obras, abordando temas como gênero, lugar social da população negra, racismo, memória e afetividade. A partir de sua trajetória pessoal, artista exerce preciosa reflexão sobre a história do país.

Duas fotografias do mosaico de Parede reaparecem em Bastidores (1997), impressas sobre tecido circular do instrumento de bordado que nomeia a obra. O termo é polissêmico, remetendo igualmente ao pano de fundo a que muitas mulheres negras estão cosidas na trama patriarcal e racista do tecido social brasileiro. São mulheres com boca, garganta, olhos e cabeça rispidamente suturados, apontoadas por linhas abruptas de silenciamento e violência. Patuás e bastidores que formam uma espécie de autorretrato à guisa de árvore genealógica. Afixados diretamente sobre a parede, parecem igualmente literalizar um objetivo político confesso da artista: preencher o cubo branco de museus e galerias com rostos negros. Não na chave do exotismo, do trabalho, da escravidão ou sexualização de seus corpos, como a história da fotografia e da arte no Brasil abundam em exemplos. Aqui, a premissa estética e política é o registro em primeira pessoa – do singular e do plural.

Biografia, biologia, história

A exposição reúne um conjunto de 140 obras da artista paulistana, num arco entre 1993 e 2018. As salas destacam “três aspectos principais da obra da artista”, segundo texto de apresentação assinado pelos curadores Valeria Piccoli e Pedro Nery: “a dimensão autobiográfica”, “o interesse pela biologia” e “os trabalhos centrados na história”. A divisão é mais didática que conceitual. A bem da verdade, os temas se imiscuem entre as obras de Paulino em soluções originais, suportes e procedimentos criativos, contidos por uma poética distintivamente autoral e irredutível a blocos temáticos. Reflexões sobre gênero, lugares sociais da população negra, racismo científico, exercícios de classificação (entomológica, botânica e humana) como instrumentos de poder, memória e afetividade, reescrita da história da arte, do país e de si – são alguns centros de interesse da artista que frequentemente se entrecruzam. Eles testemunham a consistência e longevidade das pesquisas de Paulino.

E ratificam igualmente a versatilidade técnica da artista, que passeia com elegância da gravura à fotografia, da costura e escultura ao desenho e impressão.

Em obras de pequeno porte, como a Rainha (2006) desolhada de terracota, com seios de Artemísia negra e olhos de vidro vigilantes espalhados por todo o baixo-ventre; a instalações de maior escala, como Tecelãs (2003), em que mulheres-inseto, fora das cachopas de faiança, se espalham pela sala expositiva, se contorcendo para sair dos casulos que elas mesmas enredam com fios tirados de dentro de si. Metamorfose, reconstrução, devir-mulher: conceitos que atravessam diferenças de linguagem e de prisma para se plasmar em outras obras de Paulino, como a impactante Assentamento (2013).

A instalação reelabora em tamanho humano o “Tríptico somatológico identificado como Mina Bari” (1856), conjunto de fotografias de frente, perfil e costas de uma mulher escravizada, realizadas por Augusto Stahl no Brasil, sob encomenda do cientista Louis Agassiz. A alma cindida da Diáspora negra ganha corpo no constrangimento do rosto da mulher cujo nome não foi registrado, na costura desalinhada que tenta remendar partes de seu corpo. Coração, raízes e feto costurados sobre a imagem desconforme reafirmam a humanidade que lhe foi negada no estúdio fotográfico, mas que não se reconstrói por completo. Assentamento sinaliza um movimento importante na trajetória de Paulino: aos retratos de familiares que marcaram as primeiras obras da artista, foram se adicionando fotografias de homens e mulheres escravizados, num movimento de re-enraizamento em uma linhagem, em uma história. De reativação do passado com anseios de interrupção do trauma no presente, superpondo eu e nós, ontem e hoje, “estória” pessoal e história do país.

Artista-chave para entender o país

Rosana Paulino é uma artista-intérprete do Brasil. Ela o analisa de um lugar de enunciação singular: a experiência corporificada de mulher negra. Atuando como uma fiandeira que sutura a história do país, expõe o avesso de sua oficialidade, desnuda de suas estruturas de funcionamento. Tal lente de contato, sua obra auxilia a enxergar de maneira mais acurada nosso próprio cotidiano. Como se, parafraseando os versos de Gilberto Gil, a agulha do real nas mãos da artista fosse bordando ponto a ponto nosso dia a dia.

Paulino é também professora e inspiração para artistas de sua geração e posteriores – ouvem-se ecos de seus trabalhos nos casulos de Sidney Amaral em Como construir cidades? (2012), nas estruturas móveis e performáticas de Lídia Lisboa, na delicadeza que Janaína Barros imprime à agulha. Rosana Paulino é bacharel em gravura e doutora pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, especializou-se na London Print Studio, ministrou cursos em importantes universidades, participou de mostras coletivas e individuais no país e no exterior, tem trabalhos em acervos de museus nacionais e estrangeiros. Em palavras curtas: uma artista-chave e incontornável no cenário contemporâneo da arte brasileira. O que explica tão longa espera até a realização da mostra de uma artista desse tamanho, num museu à altura?

Hélio Menezes é antropólogo e curador. Entre seus trabalhos recentes, destacam-se a curadoria da exposição “Histórias Afro-Atlânticas” (MASP e Instituto Tomie Ohtake, 2018) e da mostra de performances “E eu não sou uma mulher?” (Instituto Tomie Ohtake, 2018).

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