O escritor queniano Binyavanga Wainaina faleceu aos 48 anos. Seu amigo próximo, Neo Sinoxolo Musangi, escreve uma nota muito pessoal sobre seu legado de afiada análise social e sua existência assumidamente queer.
Binyavanga Wainaina. Foto: Paul Munene.
Existem várias maneiras de não se escrever sobre Binyavanga Wainaina.
Há uma infinidade de abordagens diferentes para se falar de Binyavanga: o escritor queniano de Um dia vou escrever sobre esse lugar; o autor que ganhou o Prêmio Caine de Literatura Africana com Discovering Home (Descobrindo o lar); o famoso escritor afeito à sátira que nos deu How to Write About Africa (Como escrever sobre a África); o narrador vestido com saia tutu de bailarina da palestra TED Conversations with Baba (Conversas com papai); o colaborador do semanário Mail & Guardian, que ridicularizou o trabalho de ajuda humanitária em Oxfamming Through the Whole Black World (Oxfamando através de todo o mundo negro); o homem gay que saiu do armário em Mãe, sou homossexual; o intelectual ridiculamente hilário e caótico da série de seis vídeos We Must Free Our Imagination (Devemos liberar nossa imaginação); e o africano que arriscou tudo ao declarar no Facebook que tinha HIV; e mais.
Quando escrevi este texto, Binyavanga Wainaina estava morto há pelo menos 22 dias. Ele tinha 48 anos. Isso é importante: Binyavanga só tinha estado nesse mundo por 48 anos, cinco meses e três dias. E então morreu. Talvez seja mais fácil falar de Binyavanga agora, depois do desaparecimento de sua pessoa física. Talvez seja até mesmo redentor escrever sobre Binya. Mas uma coisa que ninguém pode fazer com Binya é reduzi-lo a um único e palatável fragmento. Como a maioria das pessoas, Binya era – e continua sendo – uma pessoa altamente complexa. Um intelectual público, filho, amante, tio, sobrinho e amigo. O Binya sobre o qual escolhi escrever, entre todas essas possibilidades, é o Binya que foi meu amigo. O Binya que tive o privilégio de testemunhar como estudante de literatura, mas também como uma pessoa relativamente desconhecida que teve um relacionamento duradouro com o homem Binyavanga Wainaina.
Mas. Nada resta do lugar onde Binya esteve, exceto poesia. E lágrimas. Sobretudo lágrimas.
Cena I (depois do mago)
17 de novembro de 2015
nós nos sentamos nos bares esperando pelo tempo. falando numa língua estrangeira que eles chamam de normativa, porque não é mais seguro estar aqui.
(um amante espera pela morte do outro lado)
Também:
não resta nada já que o apocalipse imaginário não é mais um reflexo do tempo e Taty desde então parou com aquela canção estúpida.
(você vai contar a ela que te ensinei a insensibilizar seu corpo à dor?) nesta manhã, uma freira chorosa de pernas cabeludas abriu minha porta com seu nariz para explicar a ele o que amantes fazem quando não podem mais lamentar por seus ex. (ele diz que devo lembrá-la de pegar suas unhas debaixo da minha cama, mas quero que ele primeiro impeça esses dedos sangrentos de se dependurarem no meu teto.)
Cena II (para binya)
24 de novembro de 2015
no espaço sideral, nesta manhã, um pássaro se sentou na minha cabeceira gorjeando numa língua que chamam de amor. (binya, se o amor fosse um ato, como ele seria?) suponha que o amor fosse um verbo que faz, e o espaço, um lugar você entraria nesse tubo de aço e deslizaria comigo? (tenho uma confissão a fazer): […] tudo me leva a você. então, por favor, me diga uma coisa: posso te amar fora disso?
Cena III (por quê?)
21 de maio de 2019
binyavanga. binya. o binj. silêncio.
Cena IV
22 de maio de 2019
frank sinatra: […] Sim, houve tempos, tenho certeza de que você sabia Quando eu mordi mais do que podia mastigar Mas em meio a tudo isso, quando havia dúvidas Eu comi e cuspi fora Eu enfrentei tudo e continuei de pé E fiz isso do meu jeito
[…]
Pois o que é um homem, o que ele tem Senão a ele mesmo, então não tem nada Dizer as coisas que ele sente de verdade E não as palavras de alguém que se ajoelha Os registros mostram que aparei os golpes
E fiz isso do meu jeito
Sim, foi o meu jeito
Cena IV (Um tributo)
Nairóbi, 30 de maio de 2019
É difícil pensar em um tempo no qual eu não conhecia Binyavanga Wainaina.
Sendo a pessoa que é, Binya se recusa a me conceder a memória de um tempo-anterior ou de um tempo nunca-mais. E está tudo bem.
De Binya, sempre fui um amigo improvável. Binya não era meu amigo porque, e somente porque, éramos queer e, de várias formas, tínhamos gêneros demais entre nós. Binya não era meu amigo da maneira como ele geralmente tinha amigos que já eram nomes conhecidos no mundo da literatura e das artes. Eu não tinha estudado em Mang’u, ou Loresho, ou Lenana, ou em nenhuma das grandes escolas onde a maioria de seus amigos tinha estado. Eu tinha, em vez disso, frequentado escolas de Terceiro Mundo em partes igualmente de Terceiro Mundo no Quênia. Os amigos de Binya tinham crescido em Nairóbi e vinham de famílias com sobrenomes reconhecíveis na cartografia da distribuição de riqueza do Quênia. Eu, por outro lado, tinha crescido em internatos de qualquer lugar, menos Nairóbi, e nem mesmo tinha um sobrenome.
Naqueles dias, Binya era barulhento e talvez até irritante pela maneira como se apropriava de uma conversa com seus gestos exagerados. Naqueles dias, Binya era também adorável em seu brilhantismo, em suas análises, e em suas contradições. Nos últimos anos, Binya ficaria perturbadoramente retirado e quieto. Ele me chamaria com lágrimas e medos de morte, de depressão, de caminhos novos para a vulnerabilidade. Binya tinha mudado.
Os últimos três anos foram difíceis para nossa amizade. Nesses três anos, Binya tinha medo de ficar sozinho. Ele chorava muito. Ele entrava muito em pânico. Mas ele também cozinhava bastante – e, rapaz, como ele cozinhava! Sua comida demorava tanto, que, quando ficava pronta, já estávamos todos bêbados de cervejas Tusker e discussões… Nesses últimos três anos, Binya também contribuiu muito. Ele escreveu hinos e concebeu revoluções quase todos os dias. Ele esboçou vários rascunhos sobre as ideias mais intergalácticas que nunca experimentei em seu eu anterior. Fui dançar com o antigo Binya, que, aliás, não sabia dançar. Ele parecia ter dois pés esquerdos daquele jeito de gente branca! Eu tingi o cabelo do antigo Binya com cores extravagantes, algumas das quais ele simplesmente odiava e arrancava fora. Em uma de nossas muitas imprudências impensadas, pegamos um táxi de Nairóbi a Lamu, logo antes do novo Binya chegar em 2015.
Fizemos coisas bobas com Binya.
Dançamos. Em River Road, em Melville, em Gatwikira, em Reke Marie, no Dagos, e enviamos galinhas brancas para o Oceano Índico.
Eu amei Binya de uma forma que não achava possível para mim amar um homem. Binya era o tipo de amigo por quem eu levaria uma bala, e realmente levei balas suficientes por ele. Balas diretas e perfurantes, que me impulsionaram e redefiniram minhas políticas e a maneira como eu escolhia fazer amizades.
Binyavanga Wainaina me ensinou a amar viciosamente, imprudentemente, e num ritmo acelerado. Binya me ensinou que amar alguém também era se comprometer com o trabalho de cuidar e também acolher uma vida em conflito. Binya, que os ancestrais te abracem muito forte. Que eles limpem as partes que ainda doem. Que você, querido, seja um ancestral valoroso, e nos perdoe.
Amarei você para sempre e vou sentir muitas saudades. Um mundo sem você me parece um pouco vazio. Amo você, sempre. A todo momento e para sempre.
Cena V Estúdio 44
um espaço e tempo pós-binya
não é assim que morremos.
em uma dieta de desconhecidos: Ketepa e o cheiro de acrílicos/ dançamos de acordo com as letras/ que nunca conhecemos – infâncias ativadas como se alguma vez tivéssemos falado Lingala (mas talvez tenhamos, ou não) – [destinados à incerteza do viver – como se estivéssemos mortos]
e aprendemos a enterrar uns aos outros com olhos secos; choramos todas as lágrimas/ por pessoas que não conhecíamos (mas principalmente por nós mesmos)
É assim que morremos.
Neo Sinoxolo Musangi é artista experimental, escritor e fã confesso de arte. Vive em Kajiado, Quênia. @sinoxolomusangi
Traduzido do inglês por Soraia Vilela.