Uma publicação que reúne artistas de língua portuguesa sugere abordagens artísticas distintas para lidar com a história recente na região.
Rui Assubuji “Domingo à tarde” 1980-90; fotografia. Cortesia do artista.
Helena Uambembe “Tchingangi” 2018; performance. Foto: John Hogg. Cortesia da artista.
Concebido como um encontro curatorial entre Luamba Muinga, em Angola, e Sara Carneiro, em Moçambique, “Are We Not Makers of History?” (Não somos fazedores de história?) é uma publicação que usa a memória e a identidade para abordar uma série de preocupações artísticas, enquanto conecta histórias pessoais e sociais moldadas por forças coloniais. Os curadores definem esse projeto, resultado de uma iniciativa de residência digital intitulada Luso-Linkup, que teve como facilitadora a Bag Factory (2020),como “montagem impermanente” que dá textura às identidades sofisticadas que emergem desses eventos históricos e contínuos.
A publicação apresenta artistas que trabalham com pintura, performance, vídeo, poesia e textos reflexivos, operam entre análises históricas e previsões do futuro e confrontam a memória e o “temporal” através de narrativas profundamente pessoais, que eles ligam a histórias sociais moldadas e afetadas por forças múltiplas. A artista Helena Uambembe, cujo trabalho aponta para uma identidade porosa que sobreviveu às pressões do deslocamento em Angola e na África do Sul, entrega um conjunto de trabalhos que quebram o molde de identidades estritamente definidas e baseadas nas fronteiras nacionais. Seu trabalho de performance é uma invocação à sua ancestralidade que se estende de Angola e da Namíbia até a África do Sul. O trabalho de Uambembe dialoga frequentemente com os eventos que levaram à criação de Pomfret, uma pequena cidade no noroeste de Moçambique, de onde ela vem. Pomfret tem uma grande população de língua portuguesa cuja origem são integrantes aposentados do 32º Batalhão da África do Sul, fortemente envolvido com a repressão do Apartheid. Essa força de elite era composta por soldados angolanos e sul-africanos que lutaram nas guerras fronteiriças durante o período do Apartheid e que passaram muito tempo sem voltar para casa – mas se posicionaram do lado errado da história. Helena, no entanto, conecta Pomfret a uma longa linha de ancestralidade.
Teresa Firmino descreve sua família como angolana, congolesa, namibiana e sul-africana. Em uma entrevista inserida no livro, ela diz que eles pareciam ser principalmente angolanos, pois faziam parte do 32º Batalhão, uma força especial em grande parte angolana que integrava a Força de Defesa Sul-africana: “Em casa (África do Sul), éramos tratados como estrangeiros, mas quando visitávamos Angola e Namíbia deixavam bem claro que éramos sul-africanos”, diz ela. E acrescenta que o colonialismo, a guerra civil e a “independência” mudaram tanto as mentes quanto os corpos dos negros. Suas obras são pinturas densamente coloridas de salas constritivas, cujos ocupantes aparecem consumidos por algum delírio ou assombração.
O escritor Tavares Cebola reflete sobre o silêncio ensurdecedor que levou a um vazio social em Moçambique, após a guerra civil de 16 anos. Cebola pergunta: “Como esta geração recolhe os pedaços em meio a esse silêncio?”. Ele se inspira na noção de “responsabilidade política” de Hannah Arendt contra os fantasmas da guerra e do futuro de Moçambique. Também engajado em uma prática de escrita está José Luís Mendonça, cuja contribuição fala de maneira comovente sobre a exploração da memória por figuras que representam o Estado para ditar narrativas do futuro. Seu texto revigora uma rede de ideias que demonstram que a memória também é matéria premeditada. Mendonça cita um ensaio de Domingos da Cruz intitulado O que significa ser angolano? (2020), por exemplo, do qual consta a afirmação de que “Angola é um desses países cuja memória é o futuro”. Ele também cita a advertência de Boaventura de Sousa Santos contra as ações neocoloniais disfarçadas que certos líderes africanos impõem por conta própria.
Lizette Chirrime contribui com têxteis costurados em tela para formar figuras abstratas que parecem preocupadas com o feminino. Ela também visita a publicação com um poema autorreflexivo vulnerável, mas afirmativo, sobre seus pais e suas duas “mães+1”, dadas a ela pelo pai após seu retorno de uma ausência de sete anos. No poema, Chirrime conta que ela se tornou o manequim de sua mãe costureira, que era agressiva, mas também amorosa. Ela compartilha seu modo de autoterapia e um vislumbre de seus demônios mortalizados.
Lizette Chirrime “Brain Child”, 2018; técnica mista, 177×172 cm. Cortesia da artista.
Quem também lida com a autocura é Marilú Mapengo Námoda, artista performática que produz obras renderizadas através da tela e das lentes. Ela confronta o que considera as três pragas da sociedade moçambicana: patriarcado, capitalismo e colonialismo. O livro apresenta registros de sua performance Mama is killing the power! (Mamãe está matando o poder! – 2019), na qual ela se colocava no topo de um arranha-céu à noite. Na sua frente vemos um altar com uma taça de vinho vazia e velas acesas. Uma nota de dólar é colocada entre os dentes, dentro de um sorriso cínico. A artista passa uma sensação cerimonial, tendo como objeto de culto ninguém menos que ela mesma.
Luís Santos dá rosto a um político enganador, moldado quase perfeitamente em madeira e concreto. De sua boca sai uma folha de ferro que se enrola em volta da própria boca, dizendo-nos tudo o que precisamos saber sobre esse personagem, incluindo o que não queremos. Santos implica tanto o agressor quanto a vítima, questionando nossa sanidade, e perguntando se estaremos sãos o suficiente para não “morder a língua” quando o dia chegar para o político.
O fotógrafo Rui Assubuji oferece uma série de fotografias tiradas entre 1980 e 1990. Ele as descreve como sendo o que resta do início de um futuro melhor adiado. As imagens monocromáticas da vida cotidiana parecem esperançosas, mas, ao mesmo tempo, obtidas sob coação. Elas interferem com o tecido do tempo e falam de um momento não preenchido. Enquanto isso, a artista Yonamine abre sobriamente sua participação da seguinte forma: “Todos nós esperamos a morte de diferentes maneiras: alguns estão sentados, alguns estão pintando, alguns estão fazendo política, alguns estão matando outras pessoas”. Essa afirmação pode ser uma guia de seu trabalho e um resumo de como somos recebidos por uma prática que opera em seus próprios termos. Sua instalação Xplicit Robbery (Roubo explícito) consiste em um loop de vídeo contra uma parede coberta por recortes de jornal; não suficientemente envelhecidos para serem artefatos de arquivo, nem suficientemente recentes para refletirem o presente em chamas, eles estão suspensos entre as duas temporalidades.
Para mim, ao reunir um registro de artistas afro-lusófonos tentando encontrar outros pontos de conexão, como seres humanos, corpos e agentes espirituais, o Are We Not Makers of History? (Não somos fazedores de história?) pergunta, em última análise: O que devemos fazer com a memória, se a história é um projeto inacabado?
Veja a publicação inteira, com acesso livre, aqui.
Russel Hongwane é produtor cultural e consultor de indústrias criativas, baseado em Durban. Seu trabalho concentra-se nas tensões entre herança/Modernidade e cultura/tradição, na medida em que se aplicam à vida negra. Sua referida prática inclui pesquisa cultural, produção criativa, design e curadoria.
Tradução: Cláudio Andrade