C&AL: No Brasil existem centenas de etnias indígenas. Como dar conta dessa diversidade de pensamento e modos de viver através de uma curadoria?
Sandra Benites: Tem que ser algo bem pensado e articulado através do trabalho de vários profissionais, independentemente da origem. Minhas experiências de curadoria são sempre coletivas. Na mostra Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena, apresentada no Museu de Arte do Rio (2017), éramos quatro curadores. O mesmo aconteceu no projeto Sawé, uma mostra sobre luta de lideranças indígenas pelo território em nível nacional, preparada para o Sesc Ipiranga e que não foi inaugurada por causa da pandemia. Fomos para o Rio Negro, Pernambuco, Paraná, Mato Grosso do Sul, justamente para trazer a realidade dos lugares.
Há um trabalho coletivo tanto na curadoria e na produção da exposição, com profissionais indígenas e não-indígenas, quanto na criação das obras com os artistas indígenas. Quando se trata de uma exposição sobre história indígena, está se tratando também do pensamento indígena e não de uma visão colonizadora. Por isso procuramos sempre trazer o ponto de vista indígena. Hoje são 305 etnias, além dos indígenas que estão no contexto urbano, e 274 línguas, que começam a ocupar um lugar que tinha sido apagado. É uma questão muito desafiadora.
C&AL: Você é a primeira curadora indígena brasileira a ser contratada para a equipe de um grande museu, como o MASP. Como é para você esse papel de curadora?
SB: Quando fui convidada para fazer essa curadoria para o MASP, eu me senti muito desafiada. Refleti muito, conversei com colegas indígenas e alguns amigos não-indígenas da área. A partir disso, comecei a me fortalecer. E decidi ocupar esse espaço e dialogar, para promover um encontro a partir da perspectiva indígena. Não vou poder abranger tudo, mas duas questões são importantes: a visão indígena e a preocupação com o território. Qual a importância do território para nós? Nós temos a visão de que a Terra é o próprio corpo feminino. É importante cada corpo falar da sua própria experiência e da sua própria trajetória. Enquanto mulher, a partir da visão Guarani, vou falar muito sobre isso. Também dialogar não só com os indígenas ou sobre os indígenas, mas também o corpo feminino. Tanto a queimada da floresta, na Amazônia, quanto a tragédia de Brumadinho, Mariana, são violências ao corpo feminino. Além disso, tem a aceleração e a intensificação da violência diretamente contra as mulheres. Por que essa fúria? Somos fundamentais para o bem-estar do mundo.
C&AL: Em 2023, o MASP terá o ano dedicado às “Histórias Indígenas”. Como está sendo a abordagem dessa exposição?
SB: A metodologia da exposição está sendo pensada com a equipe do MASP. A partir da minha experiência e da escuta dos colegas e artistas indígenas, pretendo abordar a história indígena em dois aspectos: o processo de colonização e a visão de mundo própria dos indígenas. Essa cosmovisão está associada à memória e aos saberes ancestrais, que estão diretamente relacionados com a natureza. Não será possível pontuar especificamente cada etnia, mas é possível discutir, de modo geral, o pensamento indígena. Todo indígena fala sobre a sua relação com o território, com a natureza, com o espírito da natureza, a partir de sua própria visão de mundo. Será um processo de muitos encontros e aproximações com a realidade indígena. O desafio é como materializar esses conhecimentos e trocas, como tornar isso um objeto de exposição.
Também temos que considerar duas formas de vivência indígena contemporânea: daqueles que estão aldeiados e dos que vivem nas cidades. O indígena do contexto urbano existe hoje por conta da colonização e de seus processos de ocupação. Eles não têm lugar e estão na luta para repensar a própria identidade. Muitas vezes, eles não se identificam nem como indígenas, nem como brancos, nem como negros. As cidades são cemitérios indígenas. É como se os indígenas não existissem mais. E, quando existem, vem a pergunta: será que é índio de verdade? É fundamental discutir a violência que todos os indígenas sofreram e ainda sofrem, porque são obrigados a seguir a visão do governo atual, a se tornar “civilizados”. O presidente do Brasil falou que os índios precisam viver “como a gente”. Nesse tipo de sociedade, todo mundo é igual e precisa seguir o mesmo pensamento, o mesmo padrão. A ideia de que não existe outra forma de pensar, ou seja, não aceitar a diversidade, é uma forma de pensamento branco dominador.