A mídia e instituições da Espanha condenaram o ataque a uma estátua de Miguel de Cervantes, que supostamente ocorreu durante as manifestações do Black Lives Matter, e o interpretaram como uma ofensa ao “legado espanhol” nos Estados Unidos. Falamos com Nicholas R. Jones e Chad Leahy, dois especialistas em Renascimento espanhol, sobre estátuas e o movimento Black Lives Matter, as contradições do legado hispânico e o autor de Dom Quixote.
Códice Azcatitlán (segunda metade do século 16), onde se vê a armada espanhola em 1519, com Hernán Cortés e La Malinche liderando a marcha em direção ao reino asteca. Entre os soldados vai um homem negro, muito provavelmente um africano escravizado.
Durante as manifestações do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), iniciadas após o assassinato de George Floyd por um policial nos Estados Unidos, há alguns meses, monumentos a figuras históricas do Império Espanhol apareceram pintados em várias cidades da Califórnia. Foi o caso de estátuas da rainha Isabel, a Católica, do frei Junípero Serra, ou do autor de El Quixote, Miguel de Cervantes. Esses ataques geraram grande comoção na Espanha. Só o jornal espanhol ABC publicou duas dezenas de artigos sobre o assunto. Alguns deles trataram os manifestantes do movimento Black Lives Matter de forma pejorativa e desumana. Por sua vez, instituições oficiais como a Academia Real de História, o Ministério espanhol das Relações Exteriores ou o think tank americano The Hispanic Council expressaram repúdio aos ataques às estátuas e ao “legado espanhol” nos Estados Unidos. A C&AL conversou com os especialistas espanhóis em Renascença Nicholas R. Jones e Chad Leahy sobre estátuas, o Black Lives Matter e o chamado “pai” da literatura de língua espanhola.
C&AL: O escritor Miguel de Cervantes (1547-1616) não participou diretamente da colonização da América ou do tráfico transatlântico de pessoas negras. Por que vocês acham que sua estátua foi atacada durante as manifestações do movimento Black Lives Matter?
Chad Leahy: A verdade é que não sabemos quem eram as pessoas que cometeram esses atos. Há teorias sobre a possibilidade de serem manifestantes de extrema direita, posto que foram encontradas tanto cruzes celtas quanto a palavra “bastardo” na estátua de Cervantes, o que, neste contexto, teria ressonâncias racistas contra os hispânicos. Há também algumas testemunhas oculares que dizem que a estátua de Cervantes já estava pintada quando os manifestantes do Black Lives Matter chegaram à estátua do padre franciscano Junípero Serra [1713-1784]. Portanto, há várias interpretações. Uma possibilidade é que a estátua de Cervantes tenha sido atacada porque está associada ao Império Espanhol e à sua história de violência. Outra é de que se trata, na verdade, de um ato de racismo contra os hispanofônicos nos Estados Unidos.
C&AL: Instituições oficiais espanholas expressaram preocupação com o “legado espanhol” nos Estados Unidos. De que legado estão falando?
Nicholas R. Jones: Do meu ponto de vista, esse é um legado que atende e privilegia a brancura e exclui o negro. Há um tema muito interessante na história do Império Espanhol, e que complica suas versões históricas oficiais, que é a existência de conquistadores negros. O que fazemos com esses homens subsaarianos que foram para a América como ajudantes dos conquistadores espanhóis e que participaram do genocídio e da ocupação de seus territórios? Tratava-se de homens que chegaram como escravos, mas que, em alguns casos, se tornaram líderes militares e conquistadores para ganhar sua liberdade. Essa é uma história da qual não se fala. Devemos falar sobre os conquistadores negros da mesma forma que falamos de conquistadores como Hernán Cortés ou Francisco Pizarro? Devemos nos lembrar deles e criticá-los da mesma forma? São perguntas que não são feitas, porque simplesmente não se fala desses personagens.
CL: E esse esquecimento do legado negro não é típico apenas do público em geral, mas também, com frequência, da academia. A verdade é que, dada a reação na Espanha aos ataques à estátua de Cervantes, ficou claro que muito poucos parecem estar interessados no contexto atual no qual os símbolos do Império Espanhol são lidos ou discutidos. Parece pouco importar que os negros estejam morrendo nos Estados Unidos, sufocados e baleados todos os dias, e que as manifestações que testemunhamos expressem um desejo justo por reparação de séculos e séculos de violência racial. A ironia talvez seja que, como críticos, valorizamos o historicismo quando se trata do Século de Ouro espanhol, mas temos dificuldade em aplicar a mesma lente quando analisamos o contexto atual.
C&AL: Seria justificável o ataque à estátua de Cervantes como figura “racista”? Qual é o Cervantes que surge quando lemos seu trabalho sob a lente das relações raciais?
Assim que abrimos Dom Quixote encontramos um poema que homenageia o famoso poeta e professor negro da Universidade de Granada Juan Latino. Na primeira parte do romance temos também a famosa passagem onde Sancho Pança fantasia em se tornar um “negro”, quando se imagina governador da ilha que lhe promete Quixote. É uma fantasia que se apresenta como um delírio, como parte da loucura de Sancho. Em outros capítulos do romance encontramos também diálogos explícitos sobre o sofrimento de escravos negros que eram soldados do império. E, além de Dom Quixote, em outro romance de Cervantes, O colóquio dos cães, questiona-se, por exemplo, quem é mais humano, se um cão ou uma mulher negra que quer ver e alimentar seu amado. Ao longo de toda a obra de Cervantes há um claro reconhecimento da existência das pessoas e de suas experiências na Espanha, incluindo seus hábitos e costumes, assim como há um olhar crítico sobre a escravidão e o racismo.
C&AL: Cervantes é então um autor antirracista?
NJ: Eu diria que sim, que ele é um autor antirracista, especialmente quando trata de pessoas negras e suas experiências. Isso é o que eu argumento no meu livro Staging Habla de Negros: Radical Performances of the African Diaspora in Early Modern Spain (Encenando a fala de negros: performances radicais da Diáspora Africana nos primórdios da Espanha moderna).
CL: A obra de Cervantes expressa, sem dúvida, uma postura dissidente sobre as hierarquias de sua época, incluindo hierarquias raciais, apesar de seu compromisso com as ideologias do império e de sua orgulhosa participação na batalha de Lepanto, em 1571 [onde uma missão militar europeia enfrentou a marinha do Império Otomano].
C&AL: Olhando para os debates atuais sobre o papel que os monumentos históricos desempenham no contexto do racismo, que critérios vocês acham que deveriam ser adotados ao se erguer ou desmontar esses monumentos no espaço público?
CL: No fundo, tanto erguer quanto derrubar monumentos é sempre um reflexo dos valores e das ideologias de uma era. É muito importante reconhecer a historicidade do monumento, tanto no momento em que ele é erguido quanto no momento em que é derrubado. Quantas estátuas temos de Nero, o imperador romano, em 2020? Nenhuma, porque já não comungamos mais com as razões que em outro momento teriam levado a erguer estátuas dele. Voltando à estátua de Cervantes, vejo suas pichações como uma anomalia, e não como uma regra contra sua figura. No entanto, é eloquente que a reação ao ataque da estátua tenha revelado todo um discurso que mais uma vez monumentalizou o legado espanhol em detrimento dos negros, tanto os do movimento Black Lives Matter quanto os da história do Império Espanhol, e da própria obra de Cervantes.
Nicholas Jones é professor assistente de Espanhol no Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Bucknell, EUA. Sua pesquisa se concentra na agência, subjetividade e desempenho de identidades afrodiaspóricas no início da Modernidade na Península Ibérica e na Ibero-América. É autor de Staging Habla de Negros: Radical Performances of the African Diaspora in Early Modern Spain (2019).
Chad Leahy é professor assistente de Espanhol no Departamento de Línguas e Literatura da Universidade de Denver. Sua pesquisa se concentra no trabalho de Cervantes e Lope de Vega, bem como na cultura material, na história do livro e na relação entre a Palestina e a Espanha no início da Modernidade na Península Ibérica e na Ibero-América.
Catalina Arango Correa, que realizou a entrevista, é doutora em Línguas, Literaturas e Culturas em Espanhol e Português pela Universidade de Nova York. Trabalha como escritora, editora e tradutora independente.
Tradução: Cláudio Andrade