Brasil

Celebração e resistência nos filmes de Ventura Profana

Parte da Sala de Vídeo no MASP, o filme Para ver as meninas e nada mais nos braços (2024) cria um espaço de celebração e resistência, desafiando limites religiosos e coloniais do cinema. Num quarto barroco e futurista, personagens travestis dançam, profetizam e celebram vidas marginalizadas, apontando para um futuro de liberdade coletiva.

o filme começa mostrando uma sequência de fotos, que vão desde álbuns de famílias muito antigas, passando por fotos de travestis de um tempo que poderia, não sem problemas, ser chamado de contemporâneo, embaladas sempre por um órgão que vozeia lindas melodias num jazz livre. e aqui se destaca a trilha de Sir Lucas, que nos permite acessar salas até então jamais vistas dessa festa. esses rostos escuros que Profana evoca são o próprio calor da vida, a vela como o momento de fazer desejos e o sol como profecia dos novos recomeços. “dançando rumo ao fim da perpétua condenação. regozijai-vos conosco. alegrem-se por elas, vós todos que as amais. encham-se de alegrias por nós, todos os que por nós choraram. estamos mamando e nos saciando nos peitos de nossos bálsamos”. suas palavras ecoam aquilo que é óbvio e que, no entanto, não é evidente: a festa somos nós mesmos, ora essa. essa celebração é uma oração não apenas como uma forma de questionar os espaços religiosos como instituições que reiteradamente reencenam violência anti-preta e anti-trans, portanto, a serviço do Senhor, mas porque o espírito da Deise é uma arma espiritual imprescindível para Profana. é por isso que a maioria das igrejas, quando não é chata, é triste. cultuar Deise*, portanto, acontece na abertura do sorriso. Deise entende que os momentos fulgurantes em que elas pintam o terror são uma reza ao infinito. talvez, nesses momentos, sejam elas as que estão possuídas pelo espírito santo de Deise. o talento cinematográfico de Profana excede o cinema, pois as imagens que ela cultua são trabalhos de benzedeira, que limpam os miasmas dos nossos corações

e que bom que essa oração virou memória. pois agora podemos voltar e aprender a coragem para rezar a nossa festa. em Para ver as meninas, Ventura Profana construiu um pequeno momento de liberdade: “isso, minhas irmãs, eu quero que a gente fique loca, e dê muita rizada e sinta muito prazer”. nesse instante fica evidente como a arte de Profana extrapola os limites coloniais do Cinema, precisamente porque o caminho dessa liberdade é gestado no fogo baixo da profecia. por isso, jamais poderia chamar de filme a magia de uma mais velha que opera milagres. “dez pensando como tu. nove bichas maloqueira. oito dias de doidera. sete pragas no teu cu. sete bolsas de couro cru. cinco molho de pimenta. quatro mulher fulegenta. três coitada vigiando. duas travestis chorando. e uma casa barulhenta”. “oh happy day. oh happy day. eu vou beijar. eu beijarei. amanhã eu beijarei”. eis aí o momento de liberdade, em que a canção é a ignição de profecias. na substância fônica desse desejo profundo, Ventura Profana realiza um suspiro que é coletivo, de um povo que ainda está em gestação. um pequeno momento de celebração da nossa vida impossível só pode acontecer com fogo, e esse não é tanto o arquétipo da loucura, mas da coragem. por isso elas bebem, pois brindam a vida abundante que se anuncia já na sua comemoração, porque a sede é, também, pela chama da alegria

Cassie Capeta, Bianca Kalutor, Williane Jacob e Rainha F, junto de Ventura Profana, protagonizam um lindo voo da memória e da imaginação nesse filme. num grande quarto rosa, branco e vermelho, repleto de móveis barrocos e futuristas ao mesmo tempo, elas, em longos vestidos de gala, como princesas ou bonecas, começam a dançar em câmera lenta ao som de uma música que remete a uma sonoridade pop e pós-punk oitentista, enquanto a câmera joga entre aproximação e afastamento. aí podemos imaginar os movimentos de voltar ao futuro, mas, sobretudo, de aprender a sorrir o passado. ao fundo, a câmera destaca sempre seus rostos contorcendo-se de tanto dar presságios. essas imagens são construídas com uma oração de proteção tão poderosa que sinto que estou revendo essas imagens na primeira vez que as vejo. são garotas de quinze anos em seu baile de debutante, são garotas de sete anos comemorando seu aniversário, são amigas artistas renomadas celebrando o prêmio que acabam de receber, são irmãs comemorando o reencontro após décadas, são princesinhas fazendo o que querem, são guerreiras festejando a maior das vitórias, são orixás filhotes brincando de ser livre até não aguentar mais e rachar o bico. pensemos por um momento no lugar geopolítico que o Brasil assume na campanha global de extermínio anti-trans e anti-preta e anti-indígena, a partir daí, então, podemos vislumbrar que as pontes para a festa dos sonhos que Profana mira com esse trabalho já estão sendo construídas pela flecha profética da memória

é bonito poder testemunhar a forma gentil com a qual Ventura Profana faz carinho na coragem e na liberdade. mas sinto que uma das mais belas forças do seu trabalho é a forma com a qual ela nos lembra que orar é fazer, e aí nos instiga a semear alegrias de um futuro que se anuncia o tempo todo aqui

abigail Campos Leal (1988, Campos dos Goytacazes), vulto cósmico, transita entre a Arte e a Filosofia como forma de criar poéticas que nos permitam tanto destruir o mundo como o conhecemos quanto reinventar formas radicalmente outras de habitar o infinito. é doutora em Filosofia pela PUC-SP, além de ser professora da especialização Ciências Humanas e Pensamento Decolonial, na mesma instituição. publicou os livros “ex/orbitâncias: os caminhos da deserção de gênero” (GLAC, SP, 2021) e “Textes à lire à voix haute” (Brook, Paris, 2022). realizou performances e participou de exposições em várias instituições nas Américas e na Europa.

Ventura Profana (1993, Salvador, Bahia) é uma artista multidisciplinar que se identifica como travesti. Influenciada pela espiritualidade em sua trajetória pessoal e artística, ela desenvolve uma prática que engloba música, performance, artes visuais e escrita.

* Nota da edição: Termo que refere a uma forma de entender Deus como uma feminilidade. 

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