Solange Farkas foi uma das curadoras convidadas da edição de 2016 da bienal Dak’Art. C& conversou com ela sobre o Festival Videobrasil, a mostra Panoramas do Sul e a visibilidade dos artistas afro-brasileiros.
Vista de uma instalação no Galpão VB, nova sede do Festival Videobrasil, Cortesia: Associação Videobrasil, © Everton Ballardin
Vista de uma instalação no Galpão VB, nova sede do Festival Videobrasil, Cortesia: Associação Videobrasil, © Ricardo Amado
Exibição ao ar livre GALPÃO VB_19º Festival Videobrasil, Cortesia: Associação Videobrasil
C&: Como curadora, você lançou o Festival Videobrasil em 1983, logo após o fim da ditadura militar no Brasil. Conte-nos um pouco sobre como tudo começou e como o festival evoluiu nas últimas três décadas.
Solange Farkas: Há certas peculiaridades históricas, no Brasil, na relação entre as imagens em movimento e a cena de artes plásticas, e o Videobrasil tem tido um papel preponderante nessa trajetória durante seus trinta anos de existência. O vídeo como meio emergiu nos anos de 1960, mas apenas na década de 1970 ele foi assimilado pela produção artística brasileira, em trabalhos experimentais. Durante aquele mesmo período, no domínio dos filmes, o movimento brasileiro conhecido como Cinema Novo inaugurou novos e potentes parâmetros de produção. Ostentando o lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o movimento cujo ícone é o cineasta Glauber Rocha influenciou uma geração inteira de novos realizadores, destacando a realidade e o imaginário do país, assim como temas políticos e sociais no auge do regime militar. Naquele contexto, a convergência entre as imagens em movimento – particularmente o vídeo – e as artes plásticas ainda era bastante experimental. O Festival Videobrasil surgiu em 1983, num momento em que o Brasil era controlado pelo punho de ferro do regime militar, que restringia e controlava o acesso e a manifestação cultural, especialmente se tratando das formas alternativas de expressão.
Em seu estágio inicial, o festival mantinha vínculos fortes com os desenvolvimentos tecnológicos do vídeo, que estavam começando a se concretizar, embora estes inicialmente estivessem restritos aos canais de TV e às produtoras. Nesse sentido, nós fomos o primeiro e por um longo tempo o único espaço no país a exibir produções em vídeo; uma plataforma para encorajar a produção e a difusão do trabalho de jovens artistas. Durante os anos 80, o festival exibiu vídeos influenciados pela linguagem do documentário e do cinema, mas também abriu espaço para a experimentação, ao incluir produções que se ocupavam em inovar a estética da televisão. Estes trabalhos apregoavam discursos contra o establishment, se propondo a interferir nos processos de produção e a invadir a TV – que era “a cara da ditadura”, como as pessoas costumavam dizer à época.
In 1990, em nossa segunda fase, a arte eletrônica se estabeleceu no cenário de festivais e exposições nacionais e internacionais, embora o vídeo continuasse um pouco distante dos sistemas de arte mais tradicionais, suas galerias e museus. A experimentação formal e estética se intensificou, assim como a incorporação de novas mídias às obras de arte. Nessa segunda fase, o festival se tornou internacional. A ênfase curatorial da mostra competitiva deslocou-se para o Sul geopolítico, para países da América Latina, Caribe, África, Oriente Médio, Europa Oriental, Sul e Sudeste da Ásia, e Oceania. Durante o mesmo período, a mostra competitiva do festival foi acompanhada por outras mostras que eram realizadas regularmente, assim como exposições de artistas de renome internacional, tais como Nam June Paik, Bill Viola e Giani Toti.
Em 2001, no momento que consideramos ser a terceira fase do festival, nós começamos a investir em modalidades de programação e curadoria mais abertas, refletindo uma mudança substancial da dinâmica da cena artística. Para tanto, estabelecemos um diálogo mais próximo com o cinema e com a performance. A mostra competitiva começou a atrair artistas que tinham carreiras estabelecidas, um reflexo da presença do vídeo na cena; e nós começamos a incorporar regiões como a África e o Oriente Médio em maior grau. O ponto culminante dessa tendência foi a inclusão definitiva de todas as linguagens e disciplinas de arte contemporânea à edição de 2011.
Na 19ª edição, em 2015, nós entramos em uma nova fase, ao inaugurarmos nosso novo espaço, o Galpão VB. Esse espaço nos permite trabalhar em um nível mais consistente. Projetado para abrigar exposições, ações, reflexões, encontros e pesquisas, o Galpão VB aviva a coleção de vídeo acumulada durante as três décadas de atividades do Videobrasil. Essa é a ideia por trás desse espaço: acolher e nos envolvermos com artistas, curadores e o público durante o ano inteiro. Durante o 19º Festival Videobrasil, o Galpão VB recebeu a mostra Panoramas do Sul com a exposição de Projetos Comissionados, que representou outro avanço fundamental do festival. Pela primeira vez nós lançamos um convite aberto para projetos a serem produzidos pelo festival. Quatro jovens artistas do Brasil, da Colômbia, do Quênia e de Taiwan tiveram seus trabalhos contemplados.
Nosso maior desafio foi, e ainda é, nossa determinação em mudar de direção sempre que for necessário. Questionando a nós mesmos, arriscando e expandindo os limites para novos temas, linguagens e meios.
C&: Outra ideia inovadora tem sido o foco no Sul global. Qual é sua motivação e visão para colaborar nos contextos da cooperação Sul-Sul?
SF: O festival começou a trabalhar com essa região como foco principal em 1992, no mesmo ano de sua internacionalização. No começo, tratava-se de uma condição geográfica para os artistas selecionados, mas mais tarde o foco assumiu a diversidade e a complexidade do conceito geopolítico. Desde a 15ª edição, em 2005, Panoramas do Sul tem sido o nome da mostra competitiva. Em sua 19ª edição, o festival fez um movimento radical na direção Sul e agora Panoramas do Sul não é mais o nome da mostra competitiva, mas sim o núcleo de todas as escolhas curatoriais e de programação do Videobrasil, assim como da exposição de artistas convidados.
Ainda há grandes discrepâncias entre o Sul e o Norte, incluindo o sistema da arte. Dessa forma, eu acredito que precisamos de uma maneira completamente democrática para acessar os artistas e para que os artistas nos acessem. Essa era nossa intenção quando fizemos o primeiro convite aberto via internet, que era gratuito. O que é encorajador é o fato de que a cada ano o Videobrasil parece alcançar novos artistas. Na edição de 2015 do festival, um número alto de artistas participou pela primeira vez. Muitos deles também foram estimulados por nossas parcerias com instituições de todo o mundo. Um grande número de artistas enfrenta dificuldades para ter acesso ao circuito de arte sem que uma galeria ou curador legitime seu trabalho. Nós acreditamos que um convite aberto permite que venhamos a conhecer artistas que são jovens ou que estejam distantes demais, ou ainda, que não possuam representação institucional ou acesso ao sistema da arte. Nossa parceria com o Sesc São Paulo nos permite financiar a participação e a viagem de artistas para o festival – essa tem sido sempre uma característica fundamental do trabalho do Videobrasil, uma vez que temos o objetivo de incluir artistas do mundo inteiro.
C&: Conte-nos um pouco sobre a presença e a visibilidade dos artistas e produtores culturais afro-brasileiros no mundo da arte no Brasil.
SF: Acho que por um longo tempo houve uma grande invisibilidade de artistas afro-brasileiros, o que por sua vez é uma das consequências de uma história de escravidão e preconceito. Racismo e desigualdade ainda são problemas graves, e embora as políticas públicas e ações afirmativas estejam gradualmente mudando esse cenário, a verdade é que há uma grande lacuna em nossa sociedade, onde a cor da pele é um fator decisivo quando se trata de ter acesso aos meios de produção artística. Entretanto, é importante ver que sempre houve resistência, criatividade, qualidade e, acima de tudo, diversidade na produção de artistas afro-brasileiros. É por isso que sua pergunta não é uma pergunta simples, e poderia ser respondida com outra pergunta. O que é um artista afro-brasileiro? Essa classificação depende da cor da pele ou do tema da obra?
Alguns artistas e instituições tais como o Videobrasil sempre lutarão contra estereótipos e certas classificações pautadas pelo mercado de arte que afirmam a imagem de “alegria, samba e futebol”. Há artistas conectados com as tradições africanas que lidam com raça, ancestralidade, religião, outros que possuem interesses mais contemporâneos e exploram temas como gênero, tecnologia, assim como artistas que conectam todos esses aspectos. É importante pensar fora da caixa ao discutir a produção artística afro-brasileira. Dito isso, eu acho que essa produção não tem a visibilidade e a presença no circuito de artes à altura de sua importância histórica para nossa sociedade.
C&: Você é parte da equipe de curadores da edição de 2016 da bienal Dak’Art. O que podemos esperar? Qual é seu foco?
SF: Em primeiro lugar, é um grande prazer trabalhar nesta Bienal como parte da equipe de curadores convidados. Fui incumbida de escolher artistas que representam o Brasil na mostra que intitulei Travessias. A mostra apresenta trabalhos de Daniel Lima, Moisés Patrício, Paulo Nazareth, Sônia Gomes e Thiago Martins. Esses artistas compartilham uma conexão próxima com a identidade africana, embora manifestem diferentes perfis e abordagens para essa dita conexão. A mostra apresenta obras de artistas mais pautados pela tradição e outros cuja pesquisa tende ao contemporâneo. Alguns são mais experientes e renomados; outros são mais jovens e ainda não representados por quaisquer galerias. À parte de sua descendência africana compartilhada, traço comum a uma porção significativa da população brasileira, e de suas perspectivas um tanto políticas, o que chama atenção é a diversidade de estratégias e os domínios amplamente variados com os quais esses artistas escolheram trabalhar – desde lugares de intimidade até as cidades, dos oceanos escuros que abrigam legados do passado às estradas empoeiradas da África rural.
Entrevista por Aïcha Diallo
Traduzido do inglês por Uirá Catani.