Juana Valdés, nascida em Cuba e trabalhando entre Miami e Nova York, é uma das representantes de arte latinx mais inspiradoras dos últimos anos. Aldeide Delgado conversa com ela sobre identidade cubana, políticas de refugiados, discursos imperiais e a importância do reconhecimento.
Juana Valdés, Rest Ashore, video still. Locust Projects, Miami, September 12 – October 24, 2020. Photo: Zachary Balber. Courtesy of the artist.
Juana Valdés foi uma das mais poderosas representantes da arte latinx em 2020. Durante o ano, ela apresentou uma grande instalação imersiva no espaço de arte Locust Projects em Miami. Seu trabalho foi destaque no novo e inovador livro Latinx Art: Artists, Markets and Politics, de Arlene Davila, e ela recebeu o conceituado prêmio Anonymous Was A Woman, que foi concedido a artistas de destaque como Amy Sherald, Deborah Roberts e María Magdalena Campos-Pons, entre outras. Nascida em Pinar del Río, Cuba, Juana Valdés vive e trabalha entre Miami e Nova York.
C&AL: Em seu trabalho, você reflete sobre a migração como resultado de sua experiência pessoal, especificamente sobre a dinâmica do exílio familiar em Miami. Você descreveu esse período como “viver na borda da borda”. O que quer dizer com essa expressão?
Juana Valdés: Quando chegamos a Miami como uma família, em 1971, a metrópole era, e ainda permanece hoje, uma cidade com bairros segregados por raça, etnia e classe. Não podíamos viver nos mesmos bairros predominantemente brancos, para os quais a maioria das outras famílias cubanas se mudaram. Acabamos vivendo na beira de um bairro branco, na fronteira das comunidades racialmente mistas de porto-riquenhos, dominicanos e alguns afro-americanos. Embora tenhamos, como os refugiados e imigrantes recentes, nos beneficiado dos serviços do governo, ainda sofremos o mesmo tipo de discriminação que afeta os afro-americanos em termos de moradia, empregos bem remunerados e mobilidade. Isso me deixou com a sensação de não pertencer a nenhuma das comunidades – permanecendo uma estranha em ambas as culturas, negociando interações diárias.
Meu trabalho recente concentra-se na migração, porque a vejo como uma das questões mais significativas do século 21. No final de 2019, havia 79,5 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo. Ouvi recentemente, no noticiário, que a Venezuela em breve substituiria a Síria como país de origem do maior número de deslocados. E não são apenas países em guerra ou conflitos políticos. O futuro trará refugiados das mudanças climáticas, como já aconteceu com o furacão Katrina.
C&AL: Segundo a autora e curadora Ariella Azoulay, devemos considerar as pessoas classificadas como “não documentadas” em relação à massiva e violenta desapropriação de objetos que começou nos séculos 16 e 17 como parte do discurso imperial. Essa relação corpo/objeto tornou-se um elemento recorrente em sua prática, por exemplo, na série Color China Rags (Trapos de porcelana colorida) ou Terrestrial Bodies (Corpos terrestres), onde o uso da cerâmica como recurso simbólico se torna fundamental. Você pode comentar sobre o seu processo de trabalho a partir dessa perspectiva?
JV: Concordo com a teoria de Azoulay e, de muitas maneiras, meus trabalhos abordam isso, formando o que ela chamaria de uma nova ontologia: uma nova maneira de olhar para a ordem das coisas no mundo posterior à neblina colonialista. As séries colecionáveis criam essas conexões visuais através dos arranjos dos objetos. É preciso considerar de onde eles vêm, mas também o corpo/mão que fez esses objetos. O desejo ideal de quem está sendo considerado ou negado? As peças de instalação envolvem coleta, acumulação e reciclagem de objetos para criar obras de instalação escultural. Os objetos atuam como um arquivo para a reconstituição do poder através da extração de recursos como bens, terras, matérias-primas e mercadorias. A história imperial do controle é evidente na reconstituição dos arranjos na mesma forma como os museus apresentam arte africana e objetos rituais de outros povos indígenas. Não creio que você possa olhar para o trabalho sem questionar nossa história colonial e suas consequências: migração, pobreza, perda de terra e reassentamento de pessoas.
Juana Valdés, Terrestrial Bodies. Cuban Legacy Gallery, MDC Special Collections, Miami, October 24, 2019 – June 16, 2020. Courtesy of the artist.
C&AL: Sua exposição Rest Ashore (2020) evidencia como as políticas de asilo e migração produzem hierarquias entre os migrantes que por sua vez reforçam as práticas de racialização. Você poderia descrever esse fenômeno?
JV: Decidi basear a exposição na minha experiência como refugiada cubana. Como imigrante ou afro-caribenha, é preciso viajar de volta no tempo para entender Miami ou os EUA no início dos anos 1970. Comparei dados da Fundação Pew sobre cubanos-americanos e a legislação governamental. Os dados mostram uma comunidade que, no geral, se integrou a uma nova sociedade de forma bem-sucedida. Por que isso é possível – e poderia ser um modelo para abordar outros requerentes de asilo? Isso poderia ser usado para lidar com os refugiados que vêm da Síria, do Afeganistão ou de países africanos? Como será medido o sucesso de sua integração? Os cubanos são bem-sucedidos porque se identificam como “brancos” em vez de indígenas ou negros. Esse não é o caso de comunidades como porto-riquenhos, mexicanos ou hondurenhos. Poucas nacionalidades beneficiaram-se da mesma facilidade de status legal como a cubana. A pergunta que o trabalho fez é: o apoio que vem através da legislação e do financiamento do governo faz diferença? É difícil discutir com os dados.
Juana Valdés, Rest Ashore. Locust Projects, Miami, September 12 – October 24, 2020. Photo: Zachary Balber. Courtesy of the artist.
C&AL: Você participou da exposição Building a Feminist Archive: Cuban Women Photogrphers in the US (Construindo um arquivo feminista: fotógrafas cubanas nos EUA, 2019), com curadoria de Aldeide Delgado, que explorou, no contexto da discussão sobre a arte latinx, as estratégias pluriculturais para a reconstrução da identidade cubana. Como você dialogou com as categorias arte cubana, arte afro-americana, arte latino-americana ou, mais recentemente, arte latinx?
JV: Quando alguém está fazendo arte, não acho que essa pessoa esteja engajada com todas essas terminologias. Isso vem de uma compreensão do lugar onde estou fazendo e de quem escolho como público. No final dos anos 1990, decidi mudar meu foco e não necessariamente abordar a ideia de ser cubana, uma artista cubano-americana, latino-americana ou caribenha, mas questionar ideologias de gênero, raça, classe e etnia, de pertencimento e transnacionalismo, perda e migração. Através desse discurso, abordo e trabalho através desses rótulos no processo de fazer arte. Abraço a identidade latinx em parte, porque é o mais próximo da minha experiência vivida como mulher latina-afro-cubana nos EUA. O “x” em latinx incorpora todas essas realidades. O que significa ser visto, experimentado e receber respostas como uma pessoa negra nos EUA? Isso não se encaixa em uma experiência cubana, caribenha ou latino-americana. Não me vejo como afro-americana ou 100% cubana, porque são experiências específicas com uma narrativa particular. Para mim, a arte latino-americana deixa de fora indígenas e pessoas não brancas, então o que resta?
Juana Valdés, Rest Ashore, video still Dreaming of Foreign Landscape. Locust Projects, Miami, September 12 – October 24, 2020. Photo: Zachary Balber. Courtesy of the artist.
C&AL: Em 2020, você recebeu o Prêmio Anonymous Was A Woman (Anônima era uma mulher), que oferece 25 mil dólares para apoiar a carreira de artistas que se identificam como mulheres. O que significa para você receber esse reconhecimento?
JV: Foi uma confirmação incrível para mim. A bolsa aborda especificamente mulheres artistas com mais de 40 anos que estão fazendo arte com sucesso. Estamos mantendo uma carreira contra as probabilidades. O prêmio reconhece que as mulheres são sub-representadas nas artes. Isso acontece em todos os campos, mas nas artes o impacto é maior. Como expressaram muitas das outras mulheres que receberam o prêmio, há algo significativo em saber que ele está vindo de seus pares e que outras mulheres reconhecem o trabalho que você está fazendo. Ser indicada para o Anonymous Was A Woman foi emocionante e receber o prêmio foi uma surpresa. É um campo competitivo, porque há muitas mulheres incríveis fazendo arte hoje. O prêmio prova que meu trabalho ressoa.
Aldeide Delgado é uma curadora latinx independente, nascida em Cuba e radicada em Miami. É fundadora e diretora do Women Photographers International Archive (WOPHA). Suas áreas de interesse acadêmico incluem uma releitura feminista e decolonial da história da fotografia e a abstração dentro dos contextos latino-americano, caribenho e latinx.
Tradução: Cláudio Andrade