Conexões transatlânticas

O circuito de arte na América Latina e na África

A curadora argentina Gabriela Salgado fala sobre as conexões Sul-Sul no contexto da arte internacional.

C&: Como você define as conexões transatlânticas, esses vínculos em termos de identidade e movimento/migração? 

GS: Conexões transatlânticas propõe uma investigação dos precedentes históricos e das potencialidades da interação entre África e América Latina nas artes visuais, para ligar a verdade histórica através de processos que façam ressurgir diversos conhecimentos e sistemas culturais realçando os diálogos fundamentais originados do encontro entre milhões de africanos, ameríndios e europeus nas Américas. Nas artes visuais, parece que o impacto das múltiplas culturas que constituem nossa identidade está escondido sob camadas de espelhos que refletem a produção artística como referências contínuas à modernidade europeia. Para decolonizar esse modo de operar e pensar, propomos uma série de conexões transatlânticas, um tipo diferenciado de rede internacional de contatos inspirado pelas teorias decoloniais de Walter Mignolo e Enrique Dussel.

C&: Em termos de criação da história através de práticas artísticas/culturais, quais são os pontos de ligação entre a África e a América Latina? Pode dar alguns exemplos?

GS: O que ficou claro durante a realização do projeto com o dançarino brasileiro Benjamin Abras em Dakar é que as tradições de matriz africana desenvolvidas nas Américas – nesse caso particular, no Brasil, – não são necessariamente identificáveis na África. Isso porque a ligação com as culturas originais africanas foi afetada pelas próprias condições impostas pelo comércio de escravos entre os séculos 16 e 19. Em primeiro lugar, os africanos contemporâneos, claramente livres desse trauma, não se associam a esse passado, e, em segundo, as interações consequentes e misturadas de um grande número de grupos étnicos nas Américas tornou impossível que tradições bem definidas permanecessem inalteradas. Entretanto, o resultado fascinante do intercâmbio de Dakar está na capacidade mágica da dança de mesclar o simbolismo ancestral do candomblé brasileiro com o culto animista local, assim como com o hip-hop e o sabar (a dança tradicional do Senegal), e de gerar uma nova linguagem artística, fruto de um diálogo multifacetado. Dessa maneira, todos os artistas envolvidos aprenderam e influenciaram uns aos outros, explorando novas formas de incrementar seu potencial criativo.

C&: Na sua opinião, qual a perspectiva das conexões Sul-Sul no contexto da arte internacional?

GS: O papel exercido por artistas provenientes de países não ocidentais no desafio aos espaços de visibilidade e à falta de conexão entre culturas que têm muito em comum não deve ser subestimado. O Sul tem o potencial de proporcionar um nivelamento ativo num momento em que ambos, mercados internacionais e instituições, estão ávidos por explorar e incluir positivamente outras cartografias em seu jogo. No caso da Dak’art, uma bienal concebida na década de 1990 como um evento pan-africano, há um vácuo aparente em termos de presença latino-americana, dado que o conceito de diáspora geralmente envolve apenas as partes do Caribe e da América do Norte que têm o inglês e o francês como línguas maternas. Além disso, com a intensificação do interesse na arte africana, as conexões transatlânticas deveriam se tornar mais comuns, pois artistas em outras regiões do mundo estão ficando curiosos a respeito do fenômeno e dispostos a explorar o que vem sendo feito na África.

C&: Com essa ideia de parâmetros variáveis, como você vê o papel das bienais e festivais, assim como dos projetos itinerantes?

GS: Bienais e festivais são pontos de encontro úteis que servem igualmente a artistas, curadores, intituições e profissionais independentes como redes de contato. Eles são o alimento do sistema artístico, aonde vamos para ver trabalhos novos e encontrar pessoas, mas infelizmente sofrem de limitações materiais e de tempo. O cenário ideal seria a produção de bienais comprometidas a desenvolver conexões significativas duradouras com as cidades anfitriãs, já que elas são frequentemente criticadas pela desconexão com a vida cotidiana da população, que olha para os eventos com desdém, vendo-os como atrações turísticas. Para dar o exemplo contrário, posso citar dois eventos que ocorrem no Sul e se empenham em fazer a diferença. A Bienal Mercosul, no Brasil, é um exemplo de intervenções artísticas e projetos pedagógicos contínuos que acontecem entre as edições. Na África, a Bienal de Lubumbashi, na República Democrática do Congo, também está estendendo sua competência de modelo de exposição bienal para um programa mais longo, para fornecer ferramentas críticas e profissionais para artistas locais e os líderes culturais do futuro. Esses exemplos são sementes de esperança para uma mudança de mentalidade.

 

Gabriela Salgado é uma curadora nascida na Argentina e radicada em Londres. Ela tem mestrado em Curadoria de Arte Contemporânea do Royal College of Art e já foi responsável pela curadoria de grande número de exposições, entre elas, La Otra Bienal, em Bogotá, Colômbia (2013), e a 2ª Bienal de Tessalônica, Grécia (2009). Atualmente, dirige um programa de intercâmbio para artistas africanos e latino-americanos.

Aïcha Diallo trabalhou como diretora-assistente do programa de educação artística KontextSchule, afiliado à UdK / Universidade das Artes, em Berlim, e como editora-adjunta da Revista Contemporary And (C&).

 

Traduzido do inglês por Renata Ribeiro da Silva.

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