Conversa com Wallace Ferreira e Davi Pontes

Serpentes à espreita

Modernidade, fim do mundo e autodefesa são alguns dos temas abordados em entrevista por Davi Pontes e Wallace Ferreira, que revelam como suas obras decodificam os indícios da violência, transformando-os a partir do corpo.

A interação com a câmera parte da relação em imagem com o suor e a nudez dos corpos. A nudez entrega algo para o desejo de quem olha, nossos corpos negros, para que uma coreografia de autodefesa, entre outras conexões, possa acontecer depois desse primeiro contato. Ela é um princípio inegociável, já que questões morais e políticas sobre o corpo nu na arte ainda não estão superadas no Brasil e dizem respeito não só aos artistas, mas também às instituições museais.

C&AL: Como vocês elaboram a vontade de fazer arte no Brasil de 2021? Qual é a força do agora que impele para a busca de outros tempos e espaços?

WF: Fazer arte no Brasil agora já não é mais uma questão de vontade e sim de estratégia. Não tenho como romantizar. Se eu pudesse estar fazendo o meu trabalho em outro tempo/espaço, já estaria lá e sentindo muitíssimo pelo Brasil. No entanto, não é o caso. As forças que me informam e guiam minhas fugas para existir neste país não são muito diferentes das que guiam e guiaram as que vieram antes de mim. Para algumas de nós, esse país sempre foi um campo de batalha.

C&AL: Como vocês percebem suas posições neste mundo “entre a singularidade de ter seu corpo vivo e as coletividades que ele encarna”, como diz Jota Mombaça?

DP: Falar sobre autodefesa a partir da perspectiva dos nossos corpos demanda abordar violência, com a tarefa clara de falar sobre a redistribuição da violência que se concentra contra corpos negros, racializados e dissidentes. Por outro lado, não temos interesse em propor uma metáfora da violência, já que não se trata de apropriação icônica, mas de indícios que apontam caminhos para falar de violência. A luta é um desses indícios e está presente justamente como potência imprevisível em seus desdobramentos, não como mimese de gestos de ataque e defesa. É uma resposta ao questionamento de como lidar com violência sem se destruir mais uma vez.

C&AL: Quais possibilidades, não só de fim deste mundo, mas também de criação de outros mundos são lançadas por Repertório?

WF: Tenho visto muitas pessoas falando sobre o fim do mundo. Muitas pessoas responsáveis pela ruína dele, mas que sempre gozaram. Às vezes é preciso trair as palavras, sobrepor e disputar significados.

DP: Este mundo precisa acabar e a imaginação é um caminho para se liberar dele. Embora nos esforcemos em sobreviver nesse mundo, mesmo com as ferramentas existentes à nossa disposição agora, vidas como as nossas permanecem sem garantias. Por isso, o fim do mundo. Simultaneamente, existe o desafio de recusar a ansiedade em saber e conjurar o que acontecerá depois. As criações são temporárias e possibilitam habitar a borda, a margem entre este e outros mundos.

C&AL: Vocês integram a Trienal Frestas, cujo título é “O rio é uma serpente”. Como vocês escolheram serpentear esse rio aberto pela exposição em Sorocaba?

WF: Ficamos muito felizes quando surgiu o convite pra estar nesta Trienal, era um desejo que nos sondava desde o começo dos nossos trabalhos juntos lá em 2018. A trilogia Repertório tem sido a nossa maior pesquisa até então e sinto que, quanto mais nos debruçamos, mais caminhos e desvios são criados. É uma pesquisa que se mantém em fuga, que não almeja um entendimento final. O trabalho está sempre vivo, em jogo. Imaginar uma dança de autodefesa e uma forma de escapar nos mantém desejando…

DP: …como serpentes à espreita.

Luiz Rangel é produtor cultural, pesquisador e tradutor. Atuou como coordenador de projetos, com destaque para as iniciativas internacionais “Episódios do Sul” e “Hubert Fichte: Amor e Etnologia”. Sua pesquisa tem foco em história do cinema e artes visuais brasileiras.

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