Memória

O dramaturgo brasileiro Abdias do Nascimento

Abdias do Nascimento foi um importante estudioso afro-brasileiro e dramaturgo radical, cujo nome agitou a presença do Brasil em três festivais importantes para a cultura negra africana.

Vicente Pastinha era um dos 43 membros que compunham a delegação brasileira, cujas posições incluíam – além de artistas de capoeira – cantores, pintores, escultores e dançarinos de uma escola de samba no Rio de Janeiro. Agnaldo dos Santos ganhou o prêmio de escultura no festival. Naquela época, o Brasil estava sob a ditadura militar e, em nível diplomático e comercial, sua participação no festival estava em consonância com a sua reaproximação com os países da África Ocidental, principalmente o Senegal. No entanto, apesar de toda a efervescência, houve uma ausência notável.

Esperava-se que Abdias do Nascimento – fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN) e quem tinha levado a Negritude de Senghor para o Brasil – fosse. O grupo TEN tinha até ensaiado uma peça a ser encenada para a ocasião. O festival era, afinal, um palco maravilhoso para artistas afro-brasileiros destacarem sua herança africana e contribuir para este projeto de uma comunidade global através de uma negritude compartilhada. Mas, no final, não conseguiram participar devido à censura imposta pelo governo brasileiro, como Nascimento divulgou em uma carta aberta publicada durante o festival no semanário senegalês L’Unité Africaine e depois reprisado nas páginas da influente revista Présence Africaine. Nela, ele revelou os fatos políticos subjacentes da situação: os organizadores do contingente brasileiro tinham excluído os afro-brasileiros mais militantes dos preparativos do festival. TEN continuou até 1968, até o ponto em que Nascimento, acuado pelo regime, foi obrigado a se exilar nos EUA. Lá, ele construiu vínculos fortes com os líderes dos movimentos ativistas para os direitos civis e contra a discriminação racial.

O Brasil enviou uma delegação impressionante composta por diplomatas, intelectuais, artistas, dançarinos, músicos e cineastas para Lagos em 1977, para o FESTAC, o Segundo Festival Mundial de Artes Negras. A publicação oficial celebrou a incorporação pacífica dos traços e dos povos africanos da nação, que a delegação exibiu principalmente através de manifestações culturais como o samba e as religiões afro-brasileiras. Nascimento estava lá também. No entanto, ele não devia sua presença ao Brasil: ele era professor visitante na Universidade de Lagos. Isso indubitavelmente lhe ofereceu liberdade de expressão, da qual ele fez uso apaixonado para afirmar sua posição dissidente em uma intervenção intitulada “Democracia racial no Brasil: mito ou realidade?”. Pode-se imaginar a resposta que ele deu a esta pergunta. Isso mostrou como seu pensamento tinha evoluído – suas ideias eram claramente influenciadas pelos movimentos pan-africanos e afrocêntricos afro-americanos, como evidenciado, em particular, pelo seu apoio ao problema do “colonialismo interno”.

Há mais um capítulo nesta história, que vem na forma de uma conclusão. O nome de Nascimento pode ser encontrado na lista de membros do conselho consultivo do Terceiro Festival Mundial de Artes Negras de Dakar, em 2010. Ele morreu um ano depois, aos 97 anos.

 

Cédric Vincent é antropólogo e pós-doutorado no Centre Anthropologie de l’écriture  (EHESS-Paris), onde coorganiza o programa Arquivo de Festivais Pan-Africanos apoiado pela Fondation de France.

 

Traduzido do inglês por Ana Paula Siqueira.