O sociólogo Rolando Vázquez foi convidado a ir a Berlim para refletir sobre a “decolonização do tempo” como forma de pensar para além da Modernidade ocidental. A C& conversou com ele sobre terminologias, abordagens alternativas da história e sobre como ele forjou um espaço decolonial para o pensamento durante o Festival MaerzMusik*, no Berliner Festpiele.
Jeannette Ehlers, Whip it Good, 2017. Foto: Aukje Lepoutre Ravn. Cortesia da artista.
Patricia Kaersenhout, We Refuse – work in progress, livros de história mutilados, 2009. Cortesia da artista
Queremos legar a questão do fim do contemporâneo
como alguém que deixa um rastro, um testamento;
na esperança de que ela consiga seu átimo de reconhecimento
e que permaneça para nós como um memento,
uma base e uma orientação mnemônica
para continuarmos seguindo caminhando juntos,
essa gramática do tempo,
no movimento da precedência,
rumo à eclosão de universos decoloniais de sentido
C&: Recentemente você organizou uma oficina sobre o “fim do contemporâneo” e a decolonização do tempo. Qual é a sua estratégia para a derrubada dos regimes de tempo ocidente-centrados?
Rolando Vázquez: Um dos problemas fundamentais do contemporâneo é a sua temporalidade. Ele implicou a negação de passados múltiplos, de histórias múltiplas; está implicado à colonialidade, ao apagamento de outros universos de sentido. Na oficina não estávamos preocupados com a noção de um “pós-contemporâneo”, mas sim com a possibilidade de avançar rumo ao fim do contemporâneo, a estar abertos à multiplicidade de histórias que têm sido suprimidas por ele – suprimidas por seu poder normativo e por seu controle sobre os campos de legibilidade.
C&: Quando você e alguns de seus companheiros de pesquisa falam sobre o fim do contemporâneo, onde exatamente estamos neste momento?
RV: Alguns dos críticos à temporalidade moderna demonstraram que ao “outro” tem sido negado um lugar no presente. Pensadores como Johannes Fabian clamam pela diversificação do presente para que ele possa se tornar um espaço onde várias experiências e estéticas consigam coexistir. Essa é certamente uma estratégia bastante válida. Contudo, de uma perspectiva decolonial o que queremos é questionar a própria constituição do contemporâneo e sua noção do presente como o campo de legibilidade e reconhecimento.
Estar ciente da divisão moderno/colonial e da ferida colonial é o fundamento da importância de superar a normatividade dos espaços dominantes, de forma que as histórias que têm sido silenciadas possam encontrar um espaço de reemergência e de dignificação. A ferida colonial enquanto uma posição geo-genealógica nos dá uma posicionalidade distinta daquela que rege o contemporâneo. Na oficina investigamos a força normativa que o contemporâneo tem. Vimos, por exemplo, o paradoxo de certos artistas serem de fato aceitos nos espaços contemporâneos dominantes, ao mesmo tempo que passam pela experiência de presenciar que os sentidos mais profundos de suas obras não são percebidos. Seus trabalhos tendem a ser reduzidos à “superficialidade” e à legibilidade do contemporâneo. Fabián Barba abordou essas tensões de um sistema que se reivindica radicalmente aberto, ao mesmo tempo que exclui deliberadamente as experiências. Não afirmamos o fim do contemporâneo apenas numa dimensão discursiva, mas…
C&: … também se perguntam como isso pode ser posto em prática?
RV: O “fim do contemporâneo” tem de lidar com práticas e mecanismos de poder específicos através dos quais o contemporâneo se estabeleceu como um campo, sistematicamente rebaixando e marginalizando outros movimentos rumo ao real – movimentos que não pertencem à genealogia ocidental de percepção e recepção.
C&: O termo “decolonial” tem vindo à tona com frequência nos dias de hoje, mas o uso que se faz dele muitas vezes parece incerto. Diversas instituições parecem entender que chegou a hora de falar sobre a decolonização de suas coleções e programas. Tenho um pouco de ceticismo em relação ao quanto isso alcança os sistemas e instituições. Afinal, o que acontecerá quando cessar o apoio e o financiamento dessas abordagens críticas? O que acontecerá quando a moda arrefecer?
RV: Esse é outro assunto em que tocamos. Estamos preocupados com o decolonial estar se tornando uma moda, sendo algumas vezes utilizado como sinônimo de desconstrução, outras concatenado com o pós-colonial. Em muitas considerações quase já não se faz distinção entre eles. Temos introduzido sistematicamente as questões distintas que a decolonialidade traz, através do estudo de longa data desse campo e por meio dos eventos dos nossos grupos aqui na Europa: o “Black European Body Politics” (“As Políticas do Corpo do Negro Europeu”), que teve a curadoria de Alanna Lockward, e a “Decolonial Summer School” (“Escola Decolonial de Verão”), coordenada por Walter Mignolo e por mim. Esses são espaços nos quais nos tornamos um coletivo que não obedece às barreiras disciplinares ou institucionais, mas que compartilha um ethos decolonial. Juntos cobrimos um amplo espectro de experiências e reflexões corporificadas que nos dão bastante certeza quanto às nossas práticas estéticas e de reflexão.
Cada um de nós adota estratégias diferentes para ressignificar métodos e simbolismos hegemônicos. Também entendemos a necessidade de criar não apenas estratégias de contestação, mas também espaços autônomos. Estamos muito agradecidos por termos sido convidados por Berno Odo Polzer para criar essa oficina no MaerzMusik. Ela se tornou um espaço autônomo para nós.
C&: Vamos voltar à definição de decolonial.
RV: Bem, não creio que possa dar uma definição, mas consigo explicar a origem do termo e o que ele significa para mim. O núcleo modernidade/colonialidade teve origem no pensamento latino-americano. O filósofo Enrique Dussel, por exemplo, demonstrou que o conceito de Europa, tal como o entendemos, não existe sem as colônias. Ele ajudou a localizar o começo da modernidade no início da era colonial, marcada simbolicamente por 1492. Foi o momento em que a Europa passou a se entender como o centro do mundo. Isso significa que as condições para a Europa se tornar o modelo dominante de civilização não podem ser dissociadas de sua expansão colonial. A Europa se constituiu numa relação de negação do outro. O decolonial é uma resposta a isso.
O pensamento crítico no Ocidente permanece majoritariamente intramoderno. O decolonial traz a crítica feita pelo lado de fora. Walter Mignolo demonstrou que não há modernidade sem colonialidade, não há Renascença sem a escravidão, e que o Ocidente tem controlado o locus de enunciação e toda representação que se faça do mundo. Não há uma história do progresso ou do desenvolvimento da civilização sem a história da escravidão, da extração, da dominação. Não se pode separar da plantation o fato de a Europa ter se tornado o centro da economia mundial. Então isso é primordial para nós: entender que a colonialidade não é uma aberração da modernidade, mas sua base constitutiva.
C&: Existe uma perspectiva feminista?
RV: O feminismo decolonial tem sido fundamental para o desenvolvimento do campo. Maria Lugones demonstra como o poder do sistema colonial moderno não tem a ver apenas com territórios ou recursos, mas também com nossos corpos. Existem muitas outras vozes. Catherine Walsh, por exemplo, tem um trabalho incrível no terreno da transformação pedagógica. Todas essas trajetórias de ação e pensamento são muitas vezes ignoradas quando, por exemplo, museus fazem uso do decolonial, mas sem prover a referência às décadas de trabalho que estão por trás.
C&: Então para você onde termina a modernidade? Ou ela ainda está em curso?
RV: A modernidade ainda está em curso. No nosso campo o conceito de modernidade tem sido utilizado de forma particular. E isso leva a bastantes equívocos quando pensadores europeus leem a respeito. Nós utilizamos “modernidade” para nomear o projeto ocidental de civilização. É um nome que o Ocidente deu a si mesmo. Queremos desvelar a modernidade como um conceito importante para localizar o projeto ocidental de civilização e para tornar visível seu poder sobre a vida, sobre a vida das pessoas e sobre a terra.
C&: É por isso que você não usa modernidade como um adjetivo?
RV: O ponto para nós não é o modernismo e nem sobre ser ou não moderno. “Modernidade” tem significado o controle sobre o mundo exercido por uma genealogia ocidental de pensamento, de poder, de estética, de subjetividade, de todos os tipos de coisa… A modernidade controla o discurso sobre si própria, o discurso visual, o sônico, o textual… Ela produz um sistema de representação que constitui uma realidade em si. E, é importante reforçar, ela acoberta sua violência, apaga seu entrelaçamento com a colonialidade. Isso se torna palpável quando falamos das commodities, da mercadoria, não é? A mercadoria vai lhe apresentar a marca, o seu aspecto “cool”, mas vai omitir o processo de exploração, de destruição que está por trás. Você não deseja ver as pessoas que estão padecendo para fabricar suas roupas, ou a expropriação de terras e as monoculturas necessárias para a produção de algodão que esgotam espécies e florestas tropicais. Ou seja, o discurso tem a função de apagar o apagamento, de negar a negação. É isso que chamo de dupla negação da modernidade. Decolonialidade implica um processo de dar uma lição de humildade na modernidade, quer dizer, trazer a modernidade para além da soberba de sua autorrepresentação.
C&: De que forma a pesquisa decolonial aponta para novas direções?
RV: As metodologias ocidentais se referem à representação da realidade. Uma forma de questionamento que apenas reproduz, de forma mimética, a ordem social e histórica dominante. Em oposição a isso, a pesquisa decolonial clama pelo que se perdeu: o que tem sido explorado, extraído e a quem tem sido negada dignidade e existência? Todas essas questões não surgem de uma perspectiva eurocêntrica, mas da perspectiva daqueles que vivem sob a colonialidade. Então o termo “colonialidade” já aponta para uma mudança epistêmica. Na esteira de Adolfo Albán Achinte, entendemos o decolonial como um movimento de re-existência. E é aí onde distinguimos a estética decolonial do contemporâneo. A estética decolonial está sob o signo do retorno: retorno das trajetórias oprimidas, das histórias, vidas e experiências das populações às quais não foram permitidas se tornar globais, tornar-se uma realidade histórico-global.
C&: No trabalho que fazemos na C&, não damos o nome de decolonial à nossa prática, esse é um rótulo colocado pelas pessoas de fora. Na verdade gostaríamos de ir além. E talvez se passe o mesmo com artistas que são muito mais específicos acerca de suas obras.
RV: A questão com a opção decolonial é que ela não tenta ser uma nova ideologia ou uma nova utopia que irá dominar e se tornar a nova classificação para as coisas. Trata-se de uma opção que alguns coletivos ou pessoas como nós estão adotando e oferecendo como uma ferramenta que pode ser útil ou não para certas pessoas. E enquanto opção temos de localizar e enxergar sua historicidade, pois assim terá o direito de existir num contexto humilde – revelando sua posicionalidade, sempre abrindo espaço para outras formas de legibilidade. Contudo, o fato de o decolonial se apresentar como uma opção não significa que a colonialidade seja relativa; a consciência da colonialidade está fincada na experiência histórica vivida da desvalorização da vida de populações pelo mundo e da terra.
C&: Sem dúvidas. O ponto principal é mostrar que existem todas essas opções disponíveis simultaneamente.
RV: Sim, ainda que haja o risco de não reconhecer que ser uma opção não é o mesmo que relativismo. A opção não é uma posição pós-moderna a partir da qual você pode flutuar ou ter o privilégio de escolher entre esferas performativas etc. Por exemplo, um negócio como racismo reverso não existe por haver um campo desigual; existe uma história moderna/colonial na qual milhões de pessoas morreram. E isso não é uma escolha. Não se pode escolher a história da qual você faz parte. Mas se você está do lado que tem privilégio ou do lado da racialização, é possível usar sua posicionalidade e expressá-la de diversas maneiras.
C&: Na sua opinião, qual é o papel da Europa frente ao decolonial?
RV: Nós acreditamos que o fim do contemporâneo abre uma possibilidade de decolonização da Europa também, a possibilidade de a Europa afastar-se da posição de abstração, universalidade, de centralidade e novidade. A Europa pode passar a se enxergar através do olhar do outro. A meu ver, o eurocentrismo é um tipo de ignorância, uma ignorância arrogante. A possibilidade de um diálogo intercultural verdadeiro demanda deslocar as posições dominantes do centro, para não falar apenas da perspectiva do homem branco que domina as posições diretivas, o currículo, a escrita, a subjetividade histórica etc… O decolonial pode ser libertador para alguém que esteja confinado a essa perspectiva, na cegueira da posição de privilégio. O decolonial traz para o primeiro plano as condições de opressão, mas também a impossibilidade de o privilegiado conduzir uma vida ética num sistema calcado na devastação do outro e da terra. O pensamento decolonial não se refere apenas à dignificação de universos relacionais silenciados, mas também ao questionamento do privilégio. É um pensamento que se oferece como uma opção: de um lado, escutar as vozes apagadas; do outro, revelar a posicionalidade daqueles colocados na posição padrão como a norma. Para mim essas são as condições para uma transformação possível.
Rolando Vázquez é professor assistente de sociologia na Universidade de Utrecht, Holanda. Ele foi o curador da oficina “Staging the End of the Contemporary” (“Encenando o Fim do Contemporâneo”) no MaerzMusik (realizado entre 16 e 23 de março de 2017), cuja direção foi de Berno Odo Polzer. Os participantes também são pensadores renomados no campo da decolonialidade: Fabián Barba Izurieta, Teresa María Díaz Nerio, Jeannette Ehlers, Patricia Kaersenhout, Hannes Seidl, Ovidiu Tichindeleanu e Madina Tlostanova.
Tradução do inglês por Heitor Augusto.