Conversa com Tiago Sant’Ana

“A naturalização da branquitude como parâmetro de vida”

Em suas performances e instalações, o artista e pesquisador brasileiro parte de matérias como o açúcar para discutir a naturalização e o apagamento de um passado colonial no cotidiano.

C&AL: Em sua última exposição, Baixa dos Sapateiros, você insere também esculturas feitas com sapatos e livros utilizando folha de ouro. Como foi iniciar esse outro processo de representação além das performances?

TS: Baixa dos sapateiros foi uma exposição que tratou de como os sapatos foram um símbolo precário de uma liberdade apenas anunciada para a população negra, mas que nunca chegou completamente para nós. E nunca chegou, porque a própria ideia de cidadania é um conceito excludente, que não se adequa às formas de vida não-eurocêntricas. Quis expandir meu universo de experimentação, observar como essa busca por cidadania, muitas vezes exaustiva, nos afeta de diversas maneiras. Foi a primeira vez que fiz esculturas não-efêmeras. Numa das obras, por exemplo, fiz réplicas de canas-de-açúcar em gesso, que partiam do meu desejo de fossilizar esse material orgânico, sempre presente no meu trabalho já depurado, em forma de açúcar cristal. Tornar fóssil essas canas era uma vontade de pensar sobre como as relações de assimetria provocadas pelos sistemas de exploração da cana-de-açúcar perduram. É uma maneira de chamar atenção para a conservação de algo que perece com o tempo enquanto alimento, mas permanece enquanto ferida.

C&AL: A série Sapatos de Açúcar combina as duas pesquisas: a primeira sobre a cana-de-açúcar e a mais recente sobre o simbolismo dos sapatos no período colonial. Como esse encontro entre as duas investigações se deu em seu trabalho?

TS: Essa série abria a exposição Baixa dos sapateiros. Era como se você saísse da minha outra exposição, Casa de purgar, continuasse entendendo minha visão sobre a história do açúcar, mas fosse um pouco além no sentido de perceber no que esse sistema resultou para as pessoas negras. Em Casa de purgar, eu pesquisava sobre o trabalho negro e permanências de sistemas de exploração. Visitei ruínas de antigos engenhos de açúcar no Recôncavo da Bahia, a região onde nasci. E, nessas construções arruinadas, realizei uma série de ações que remetem a relações de trabalho, a exemplo de passar roupas e peneirar. O açúcar aparecia com abundância, diametralmente oposto ao significado dele como “ouro branco” no período colonial. Então, almejei fazer esses sapatos de açúcar como um duplo vínculo. Primeiro, para prestar atenção no objeto sapato em si, mas feito de um material que foi a mola propulsora da branquitude para explorar as pessoas negras; e, depois, para simbolizar a fragilidade dessa liberdade. Porque os sapatos de açúcar, nas fotografias, estão na iminência de serem dissolvidos na água do mar.

C&AL: Esse é outro aspecto que chama atenção nessas imagens: o mar como o ponto de conexão com a rota das navegações – um tema que remete à exposição Histórias Afro-Atlânticas, da qual também você participou. Qual a importância dessa mostra para o seu trabalho, no sentido de conectar com a história da escravidão de outros países?

TS: Histórias Afro-Atlânticas foi uma mostra histórica e fiquei muito satisfeito em poder fazer parte e colaborar desse momento de inflexão para a comunidade negra que está unida e, concomitantemente, separada por esse território geográfico, mas também imaginário que é o Atlântico. Apresentei um trabalho chamado Apagamento #1, um vídeo de pouco mais de um minuto, que mostra a palavra “Cabula” grafada em minha cabeça. Aos poucos, com o crescimento do meu cabelo, essa palavra vai desaparecendo. Fotografei-me dia após dia, dentro do meu próprio quarto, adotando três posições que remetem a um fichamento fotográfico feito pela polícia. O trabalho parte da chacina de 12 jovens negros executados pela polícia em Salvador, em 2015, no bairro do Cabula – um crime nunca solucionado pela Justiça, porque essas vidas sequer são consideradas vidas para o sistema judicial brasileiro. Ao mesmo tempo, Cabula foi um antigo quilombo em Salvador, um lugar de resistência, insurgência, onde o acesso era complicado e, por isso, um lugar propício para servir como fortaleza e também como um lugar sagrado por sua natureza exuberante e densa naquela época. Ainda hoje o bairro carrega, em suas imediações, comunidades afrorreligiosas importantes que resistiram a todo processo de extermínio e apagamento.

C&AL: Como você vê sua produção entre os diferentes entendimentos sobre a arte afro-brasileira?

TS: Esse conceito é algo ainda em transformação e tensão. Primeiro, precisamos pensar no que seria preponderante para se dizer “arte afro-brasileira.” A temática das obras? A origem de quem produz? Ambos os fatores? As exposições que reúnem poéticas artísticas negras brasileiras estão explodindo no país, creio que muito porque há uma efervescência necessária sobre essa discussão, mas também pela própria conquista de outros espaços pela comunidade negra pós-políticas afirmativas. É necessário falar muito ainda sobre a atualização dos acervos das instituições. Não é um “favor” colocar mais pessoas negras nas artes, é uma imensa dívida. No meu entendimento, a questão da negritude dentro da arte não é uma temática. É uma posição política e uma disputa de narrativa, é contrariar as estatísticas e os estereótipos. Inclusive, os estereótipos sobre trabalhos produzidos por artistas negros, que ocasionalmente acabam ficando sob a pecha de “naif.” Minha obra, por exemplo, apesar da minha imagem de homem negro, que é geralmente visto de maneira muito embrutecida, é um trabalho muito delicado. Fala sobre violência, mas não tenta reproduzir imagens de violência. Porque já somos constantemente violentados. Além disso, as minhas performances têm um esforço meditativo que tenta exatamente purgar essas memórias e histórias de dor, mas nunca esquecê-las. Nesse contexto, me identifico muito com um grupo de artistas que tenta reescrever essa história do Brasil e da arte a partir de outras experiências de vida apagadas pela oficialidade branca colonial eurocêntrica.

Nathalia Lavigne é jornalista, pesquisadora e curadora, mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Atualmente é pesquisadora visitante da The New School, em Nova York. Na USP, integra o grupo de pesquisa Estéticas da Memória no Século 21 e desenvolve um trabalho sobre colecionismo digital e circulação de imagens de obra de arte no Instagram.

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