Exposição “Osso”

Produtos da limpeza: lixo, Justiça seletiva e arte contemporânea

“OSSO: Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga”, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, reuniu obras de vários artistas a fim de dar visibilidade ao caso emblemático de jovem negro vítima da arbitrariedade da Justiça no Brasil.

Portanto, aquilo que foi e que já deveria estar enterrado retorna para perturbar e explicar o presente, como em A permanência das estruturas, na qual Paulino imprime diversas vezes a frase título da obra em dois pedaços de pano costurados a outros pedaços que mostram imagens antigas usadas para sustentar a “cientificidade” pretensamente positiva dos discursos racistas.

Também interessado pelo que há de passado no presente, Lauriano propõe em sua Experiência concreta #3 que o público visitante dê continuidade a uma obra em processo de construção. Em duas folhas de papel de tamanho A4, com irônico didatismo, ele sugere: RECOLHA pedras portuguesas que encontrar na rua e traga para a EXPOSIÇÃO. POSICIONE as pedras alternando as cores para formar uma GRADE. Ora, as pedras que podem servir para construir a grade podem também ser a arma para agredir um corpo negro e pobre – alvos preferidos da Justiça brasileira.

Em Autorretrato, de Moisés Patrício, um conjunto de nove peças de 5×3 cm cada são adesivadas na parede. Delicadas, elas combinam desenhos abstratos feitos com fios do próprio cabelo do artista, que ganham um movimento orgânico. Formalista e mínimo – afinal usa apenas o preto do cabelo e o branco da base sobre a qual desenha – esse trabalho se afasta de suas conhecidas imagens fotográficas da série Aceita?, na qual suas mãos aparecem em gestos de dádiva.

Pequena também é a pintura Cadeira calçada, do artista goiano Dalton Paula. A escolha por essas dimensões está alinhada à antiga prática dos ex-votos, meio pelo qual os católicos pagam a um santo um milagre alcançado por meio de representações visuais bi ou tridimensionais. Na cultura material do catolicismo popular negro e nas religiões afro-brasileiras, as cadeiras agem acolhendo reis e rainhas coroados em folguedos populares, sacerdotes de terreiros nela tomam assento e, não raro, estão interditadas a pessoas não autorizadas. Do modo como é tratada por Paula, a cadeira fica frágil, pois o que a sustenta são copos de vidro, o que faz com que só possam manter a si mesma, jamais acolher um corpo. Nesse sentido marcam uma ausência.

Em Maré vermelha, videoinstalação de Thiago Gualberto, o artista mostra um jovem homem de costas, vestido de short preto, cabelos curtos, usando fones de ouvido. Sem qualquer outra decoração corporal que possa desviar a atenção sobre seu corpo viril, que em gestos lentos sugere uma dança – ginga – que “naturalmente” emergiria da experiência corporal de pessoas dos segmentos pobres da população afro-brasileira. Esse movimento serve de metáfora para que o artista comente não apenas o corpo visto, mas o olho da câmera que, mais do que apenas olhar, documenta, enquadra e arquiva.

Paulo Nazareth, por sua vez, apresenta duas obras Tommie e Projeto/Coleção: o título desta última obra remete a uma série de desqualificações de seu fenótipo atribuídas a ele em lugares pelos quais já passou. Artista que borra as fronteiras entre sua origem e seus próprios deslocamentos territoriais, essa obra revela como autoridades policias reagem a sua materialidade corporal: narcotraficante, ladrão, terrorista, mau elemento, débil mental, entre outros termos impressos em uma pequena folha de papel jornal produzida pela plataforma editorial P. NAZARETH ED. / LTDA.

A mineira Sonia Gomes apresentou um trabalho de sua série Torções, que nos ensina algo sobre como pessoas são construídas socialmente. Interessada menos na crítica do passado e mais na memória de famílias e linhagens afetivas, Gomes manipula, entre outros, alguns panos que restam de ritos sociais de passagem. Roupas que tiveram contato íntimo com entes queridos, peças para o corpo e para a casa em momentos emocionalmente carregados de sentido. Amarrando, costurando e torcendo, a artista revela, através de suas peças, o quanto os trajes produzem corpos. Roupas têm, inclusive, a capacidade de definir quem oprime e quem é oprimido. Os ternos de juízes no Brasil, comprados com dinheiro público e reservados para essa finalidade, contrastam com as roupas de meninos recolhidos em abrigos, tanto quanto com o uniforme bege dos adultos nos presídios superlotados e sujos, que violam direitos humanos fundamentais.

 

Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.

 

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