Religião como inspiração

Eneida Sanches – Transe e deslocamento de dimensões

Entre as artistas negras brasileiras, ela é uma das poucas que discute em suas obras a proximidade com o sagrado. Mostra recente em São Paulo revelou alguns de seus trabalhos ao público.

Olhos de boi

Composta por nove obras, a exposição deixou claro a obsessão de Sanches por um tema: os olhos de boi. Este tema é inspirado no ebó – ação ritual realizada a partir de uma receita religiosa que pode conter diversos ingredientes. No caso dos olhos de boi, o objetivo é impedir um tipo de inveja que, no Brasil, é conhecida por “olho gordo”. A escolha pela gravura em metal permite à artista multiplicar esses olhos que tanto lhe impactaram desde seu primeiro contato: primeiramente ao comprá-los, depois por seu uso no ebó.

Neste sentido, a gravura não é mera cópia da imagem do olho de boi, ela funciona como um fatiamento do tempo de modo a ressaltar a relação entre o todo e as partes. No espaço térreo da galeria, o visitante iniciava o trajeto pela obra Transe Iluminado (2012), na qual um conjunto de estruturas metálicas em forma retangular foi instalado na escadaria que levava à continuidade da exposição no piso superior.

Essa obra composta de volumes geométricos em aço inoxidável é parcialmente encoberta por dezenas de pequenas gravuras contendo imagens dos olhos de boi impressos em tons azuis, cinzas, pretos e verdes. No piso superior estavam expostas, entre outras, a infogravura Cogito/contemplo/medito (2017), na qual os olhos de boi estão ora dentro, ora fora das três cabeças. Esta operação entre dentro e fora sugere um estado de não diferenciação entre pensar, ver e meditar.

O mesmo ocorre com a multiplicação da forma olho de boi na obra Transe Wearable (2007), na qual um par de sapatos feitos de papel é exibido em uma caixa de acrílico. Produzido em material frágil e protegido na caixa transparente, ele não apenas só pode ser olhado, mas é como se olhasse para o espectador à medida em que é estampado com o tema dos olhos de boi.

Arquitetura, orixá e gravura

Graduada em arquitetura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Sanches vem de uma formação inicial dos 6 aos 14 anos de idade na Escolinha de Arte da Bahia. Seu retorno às artes visuais se deu pelo interesse nas ferramentas de latão e cobre para uso religioso quando foi aprendiz do mestre ferramenteiro baiano Gilmar Conceição. A partir de 1992 começou a exibir esses objetos no circuito artístico dentro e fora do Brasil.

Em 1997, como aluna ouvinte no mestrado da UFBA e, em seguida nas oficinas do MAM Bahia, Sanches aproximaria essas diferentes formas de pensamento construtivo. A junção entre a arquitetura, as ferramentas de orixá e a gravura em metal é que lhe tem permitido realizar trabalhos como os expostos em Transe, deslocamento de dimensões. Neste sentido, uma fala sua é sugestiva a respeito do modo como manipula referências e conceitos sem separá-los em sua expressão artística: “Somos, às vezes, uma coisa em cada lugar, o que não significa nenhum tipo de esquizofrenia”.

 

Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.

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