Conversa com Rose Mara Kielela

“A margem da margem”

Em suas performances, a brasileira Rose Mara Kielela, que hoje vive em Angola, aborda a questão do não pertencimento: “algo muito profundo na estrutura psicológica dos afrodescendentes por todo o mundo”. Theresa Sigmund conversou com a artista para a Contemporary And (C&) América Latina.

C&AL: Como seu corpo performático ajuda você a se mover pelas histórias da negritude e de sua condição feminina?

RMK: Entendo a criação artística como um ato autobiográfico, que conecta a vivência pessoal do artista às vivências de sua comunidade, e é nessa relação entre o eu e o mundo que a arte acontece. Comecei meu trabalho criativo muito jovem, e sinto que amadureci em conjunto com o meu trabalho. No Brasil no qual nasci, não se discutia questões raciais abertamente como acontece hoje, nem as teorias feministas eram tão faladas como hoje. Quando entrei na universidade, as cotas raciais ainda estavam em discussão, de 15 anos para cá as coisas mudaram muito. E foi essa mudança do país como um todo e o acesso que tive ao mundo das artes que me fez adquirir consciência crítica sobre meu lugar na sociedade brasileira. E o mesmo acontece com meu trabalho criativo, que inicialmente teve como temática as sensações de “não pertencimento”, de “necessidade de manutenção da memória para a construção do eu” – temas que atravessam a percepção sensível da situação do afrodescendente no Brasil – até chegar a ser um discurso direto, consciente e crítico sobre a situação da mulher negra no mundo como em A margem da margem.

Minha experiência na universidade foi cercada por referências europeias e estadunidenses. Durante o processo de desenvolvimento do meu trabalho, fui pesquisando pensadores que estão mais próximos das minhas questões e, neste momento, acabo por incluir essas visões de mundo no meu trabalho. O poema de A margem da margem, por exemplo, tem uma estreita relação com a “zona do não ser”, definida por Franz Fanon como zona psíquica onde a pessoa negra que toma consciência de sua condição social se vê enclausurada ante à branquitude normativa. No caso da mulher negra, isso acaba por ser duplamente violento, uma vez que à questão de raça adiciona-se também a questão de gênero e, como coloca Bell Hooks, sendo a mulher negra o duplo oposto de uma sociedade patriarcal e racista, esta torna-se alvo da mais cruel e violenta precarização social.

C&AL: Você afirma que sempre lidou com a sensação de não pertencimento ao Brasil. Agora você está vivendo em Angola. Poderia falar sobre como os dois lugares influenciam seu trabalho artístico e se há diferenças entre “estar no mundo” nesses dois lugares?

RMK: A questão do “não pertencimento” é algo muito profundo na estrutura psicológica dos afrodescendentes por todo o mundo. E nas Américas isso se relaciona de forma direta com o processo histórico da escravidão. Pois, como explica Neusa Santos Sousa, o negro na Diáspora é violentado cotidianamente pela dupla injunção de tentar atingir o ideal do ego do sujeito branco e recusar, anular, negar a presença do seu corpo negro. A pessoa negra na Diáspora não pertence ao próprio corpo, não pertencendo, portanto, à própria forma que torna possível a sua existência, ao mesmo tempo em que percebe que seus direitos de cidadãos são constantemente violados no território onde nasceu (como, por exemplo, os filhos de africanos que nascem em Portugal, mas não possuem a nacionalidade portuguesa). Sendo assim, o não pertencimento do afrodescendente se dá em âmbito existencial e territorial.

No meu caso, em particular, é muito curioso, há no Brasil muitas manifestações culturais que fazem referência a muitos aspectos de uma possível cultura angolana pré-colonial, mas que em Angola já estão quase totalmente extintos. Angola é um país recém-saído de uma dura guerra civil, pouco sobrou do patrimônio cultural imaterial no cotidiano angolano, e neste momento os processos culturais e identitários, que são dinâmicos, estão em reconstrução. Por outro lado, o soterramento da cultura local pela guerra deixou como referência apenas a estrutura cultural colonial. Ou seja, em Angola, o colonialismo continua muito presente social e culturalmente.

Há países africanos como Senegal, Benim ou Gana, onde a relação intrínseca entre África e a Diáspora é reconhecida, onde os afrodescendentes das Américas são vistos como irmãos, no entanto, esse não é o caso de Angola. Aqui sou mais uma estrangeira como outra qualquer. E, com certeza, essas questões serão abordadas em trabalhos vindouros, pois neste momento estou sendo bombardeada por informações que vêm de todos os lados, e me fazem repensar as questões raciais que tenho vivenciado nas minhas andanças. Com certeza fazer o triângulo Brasil, Portugal (antes de vir aqui, vivi em Portugal durante um ano e meio) e Angola é uma experiência de vida que vai render muitos trabalhos.

Rose Mara Kielela é graduada em Dança pela Universidade Estadual do Paraná, tendo participado de diversos projetos, dentro e fora do Brasil, envolvendo manifestações culturais afro-brasileiras. Depois de viver em Lisboa, mudou-se para Angola, onde dá sequência a pesquisas sobre a relação entre imagem e movimento. É cofundadora do grupo de performance “Agô Performances Negras”, ao qual ainda pertence.

Theresa Sigmund, autora da entrevista, é pesquisadora freelancer na área de cultura. É editora/coordenadora da Revista Contemporary And (C&). Vive e trabalha em Berlim.

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