March Meeting 2018

Como se exerce resistência na arte de hoje?

De “Songs for Sabotage”, na Trienal do New Museum, à “Breaking Point”, na Trienal de Fotografia de Hamburgo, as instituições de arte empenham-se hoje em inspirar atos sociais e políticos. Muitas vezes, esse desejo pode acabar se traduzindo em conceitos ambíguos e abstratos, ou, até mesmo, ter o efeito contrário. Como a arte pode representar uma mudança de forma tangível? Essa foi um das questões tratadas no encontro “March Meeting” deste ano na Fundação de Arte de Sharjah (SAF), nos Emirados Árabes Unidos.

A série de encontros e conversas reuniu vozes e projetos jovens, como o DAS Art Project e o Cinema Akil, bem como figuras consagradas, como Salah Hassan e Rasheed Araeen. Em combinação, essas vozes apresentaram formas antigas e novas de fazer diferença, oferecendo a chance de questionar essas ideias e propor alternativas. Os vários diálogos e apresentações se concentraram em três áreas principais: a política, a artística e a social.

Novas linguagens e formas para o político

“A resistência pode acontecer na arte sem assumir uma forma política”, afirmou Rasheed Araeen na abertura de um debate. Em conversa com a pesquisadora do SAF Saira Ansari, o artista destacou a escrita como veículo para a organização de pensamentos e a necessidade de uma nova maneira de escrever e olhar as coisas, como modo de atingir uma nova forma de ação, de enfrentar e expor as deficiências do sistema. “Os artistas de hoje não estão mais lutando contra a ordem colonial”, acrescentou, referindo-se à popularidade crescente de artistas não ocidentais no mercado de arte global e à apatia política que normalmente a sucede.

Novas linguagens e realidades também foram tópicos abordados no painel com o artista Sarnath Banerjee, o escritor Deepak Unnikrishnan e a professora Uzma Rizvi. A conversa explorou a questão de como textos, desenhos, gestos corporais, humor e realismo mágico podem vir a constituir uma linguagem própria. Mesmo que isso possa soar complexo, as conclusões principais do debate foram traduzidas para o papel da ficção como instrumento de alienação que cria mais identidades e possibilidades e melhores formas de escrever sobre grupos considerados como outros, como a recusa em se indicar vernáculos em itálico.

Em outro debate que contou com grandes nomes das artes e do mundo acadêmico, Manthia Diawara, professor do Instituto de Assuntos Afro-americanos da Universidade de Nova York, se juntou ao professor da Universidade Cornell Salah Hassan para discutir o significado do material cultural em sua abordagem da histogriografia. Seu debate também derrubou a “amnésia” nas relações entre o mundo árabe e a África, observando retrospectivamente como, nos anos 1950 e 1960, a África exerceu um papel fundamental nos movimentos de libertação e decolonização no mundo. Eles também destacaram conexões menos conhecidas, por exemplo, como Malcolm X mudou sua política após sua visita à Arábia Saudita, o que relativiza a relação estabelecida recentemente entre Trump e Bin Salman.

A importância da auto-organização, comunidade e arquitetura

No nível comunitário básico, muitas discussões exemplificaram projetos bem-sucedidos antigos e atuais. Abir Saksouk, do Public Works, apresentou um projeto que resiste à gentrificação fazendo seu mapeamento, ao mesmo tempo que se envolve com a produção de conhecimento das pessoas locais, e que não se restringe ao mundo acadêmico, nem ao inglês. Naeem Mohaiemen apresentou Mutiny Party, um evento noturno do Sul da Ásia em Nova York, que posteriormente ficou conhecido como uma formação de grupo político. “Espaços alternativos têm de assumir o controle do espaço, em vez de apenas criá-lo”, enfatizou o artista, que também é colaborador da Samar Magazine. A curadora e editora Sharmini Pereira falou sobre seu projeto Raking Leaves, uma editora sem fim lucrativos, e livros enquanto forma de arte como um meio de democratização da arte. Dentro do mesmo tópico, o artista aborígene Dale Harding relatou suas experiências na Austrália, onde expôs a arte produzida com sua comunidade num cubo branco. A arquitetura também foi explorada num painel com Manuel de Rivero, do Supersudaca, Mona El Mousfy, do SpaceContinuum, e Yoshiharu Tsukamoto, do Ateliê Bow-Wow, que conversaram sobre arquitetura e preservação em relação à acessibilidade a habitações e espaços sociais. “É importante olhar para a arquitetura nesse contexto e discutir as várias questões que enfrentamos em termos de planejamento urbano, habitação, espaços sociais e como a arquitetura pode contribuir para melhorar a vida da população”, disse Hoor Al Qasimi, que também mediou o debate. “E não somente olhar a arquitetura pelo viés de torres infinitas e projetos glamorosos em grande escala”.

Arte como protesto e resistência

Além dos debates, houve performances e momentos poéticos ao longo dos dias. Wael Shawky reinterpretou o poema francês sobre as Cruzadas, La Chanson de Roland (A canção de Rolando), sob uma perspectiva árabe. A performance consistiu em 20 cantores e instrumentistas de música fidjeri tocando no estilo tradicional dos mergulhadores de pérolas do Golfo Árabe ao longo de passagens selecionadas do texto. Hajra Waheed traçou paralelos entre heranças da violência colonial e a história íntima de sua família numa performance de luz e sombra. E Neo Muyanga apresentou algumas de suas obras colaborativas com cantores locais de todas as idades. Para Naham, o artista convidou diversos cantores dos Emirados a formarem um coro para uma performance de várias canções de resistência. Estas também se baseavam nas narrativas históricas de trabalho e luta dos naham (cantores de navios de pérolas). Já em Tsohle (que significa “todas as coisas” em sesoto), o compositor interfere em narrativas musicais de luta com quatro cantores executando hinos de igreja e canções sul-africanas de protesto contra o apartheid.

Protesto e resistência são conceitos tão velhos quanto o mundo. O March Meeting 2018 da SAF explorou uma vasta gama de ações e ideias que mapeiam a história, a variedade e a efetividade da resistência. MM 2018 apresentou a resistência como um ato desafiador, porém recompensador, para o qual a arte também pode contribuir bastante. Talvez uma das grandes sacadas dos debates tenha sido que, com tantas opções para trazer mudanças, não precisamos ser ingênuos. “Como artistas que trabalham com a comunidade local, é sempre muito importante reconhecer nosso privilégio”, declarou Yaminay Chaudhri, do Tentative Collective, um grupo de pessoas que compartilha recursos para criar obras de arte colaborativas em espaços urbanos cotidianos no Paquistão. “E é igualmente importante reconhecer a ação das pessoas com quem queremos trabalhar.”

É hora de começar.

Por Will Furtado.

Traduzido do inglês por Renata Ribeiro da Silva.

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