Uma instituição com o protagonismo da Pinacoteca teria condições de, com relativa facilidade, arquitetar empréstimos, empregar estratégias de mobilização dos arquivos e confiar nas articulações de documentos para ampliar o campo de discussão. Incluir artistas e discursos não provenientes de uma matriz de descendência africana tão nítida e ao mesmo tempo tocar em outras facetas de assuntos-chave poderia ter agregado as questões e fricções necessárias para estabelecer contrapontos e narrativas que desviassem daquelas oficiais que pareciam, no final, pautar a mostra. Essa exibição reforçou um rijo sistema cronológico, formal e linear no qual não apenas as obras, mas também os próprios sujeitos – os artistas – pareciam se tornar, novamente, representações.
Mesmo que a questão da identidade seja chave, ela não sintetiza as discussões dos aspectos que compõem a complexa questão negra no campo da cultura. Tópicos como espaços de coexistência, assim como classe e direitos, permanecem quase em silêncio no país, pois tropeçam na própria ideia de identidade nacional e nos regimes de visibilidade, inclusão e função social. Essa ignorância em geral reforça as situações violentas nas quais as populações negras no Brasil estão imersas.
Dessa forma, é imperativo reconhecer as práticas religiosas, culturais e populares do universo negro como fatores-chaves na formação da sociedade brasileira e de seus atuais desenvolvimentos socioculturais. Inúmeros artistas negros brasileiros responderam a essas conexões inerentes. Contudo a questão permanece: onde a cultura afro-brasileira e seus atores se encaixam? Quem está autorizado a falar, e como, sobre sua importância e valor no atual estado de coisas? Como eles podem se articular e transitar em tal campo sem incorrer nos vários tipos de violência que, consciente ou inconscientemente, são repetidos e perpetuados? A violência contra a cultura afro-brasileira está longe de ser uma coisa do passado. Ainda assistimos incontáveis casos de ataques e investidas contras as comunidades negras brasileiras hoje.
É imperioso derrubar os entendimentos e padrões sociais que empurram as manifestações afro-brasileiras para as margens das narrativas oficiais, especialmente quando o assunto é a escrita da história. Necessitamos, dessa forma, nos perguntar quais ações culturais e curatoriais podem contribuir para que se compreenda a posição fundamental da população afrodescendente na sociedade brasileira. Se tais ações não conseguirem escapar das recorrentes lógicas de preconceito irão, no máximo, reafirmar uma longa história de controle e separação, que parece operar hoje através de uma aparente integração.
(1) O decreto 528, de 28 de junho de 1890, abriu o país para a imigração europeia e estipulou que negros e asiáticos apenas poderiam entrar no Brasil com a autorização do Congresso.
Beto Shwafaty é artista e pesquisador baseado no Brasil. Está envolvido com práticas coletivas, curatoriais e espaciais desde o começo dos anos 2000, e, como consequência, desenvolve uma prática de pesquisa sobre espaços, histórias e visualidades, conectando, formal e conceitualmente, temas políticos, sociais e culturais convergentes no campo da arte.
Traduzido do inglês por Heitor Augusto.