Conversa com Diane Lima

“Deslocar a ideia de centro, mexer com as margens, questionar as fronteiras, as categorias e as hierarquias”

A curadora independente e diretora fala sobre seus projetos curatoriais e criativos mais recentes e sobre a relevância deles no atual contexto da produção cultural brasileira.

C&: Nós nos encontramos pela primeira vez em novembro de 2014. Você estava lançando o projeto NoBrasil. O que é exatamente esse projeto?

Diane Lima: Sim, foi exatamente o momento em que cheguei a São Paulo com o desejo de criar uma plataforma multidisciplinar que conectasse artistas de diferentes áreas de expressão, que trouxessem em seus trabalhos não somente uma perspectiva crítica sobre as problemáticas sociais, mas que, sobretudo, estivessem ressignificando suas práticas através desses atravessamentos. Como as manifestações micropolíticas atuam sobre as e através das questões macropolíticas? Como se cruzam práticas artísticas e de resistência? Eram as perguntas que a plataforma fazia. Passados esses quatro anos, hoje tenho mais clareza do quanto a NoBrasil foi fruto do ambiente de otimismo que ainda vivíamos com a chegada da Copa do Mundo e as promessas que tínhamos de ser o país do futuro ou “um país de todos”, slogan da era Lula.

Nesse sentido, sou parte de uma geração que foi de algum modo influenciada pelas políticas de um governo popular-progressista e que, apesar das incoerências e paradoxos, deixou suas marcas na economia da cultura – seja diretamente, pelas leis de incentivo e fomento criadas sob os interesses das diretrizes de um plano nacional de cultura; seja indiretamente, pelas reverberações que tais políticas produziram na indústria cultural, nas sociabilidades e na produção de conhecimento.

C&: A NoBrasil se propunha a discutir as relações entre arte x politica no contemporâneo?

DL: Sim, o desafio sempre foi pensar as dimensões utilitárias e artísticas da linguagem, questionando sobre como podíamos expandir seu potencial estético e comunicacional. Desde 2012, quando comecei a desenhar o projeto, vivíamos a emergência de todo esse movimento de autoafirmação e autodeterminação que hoje se consolida em todos os campos – desde as artes visuais, o design, o cinema, até a produção acadêmica e a música, e que intersecciona diferentes pautas, como, por exemplo, as questões de raça, classe e gênero; as discussões sobre a cidade e sobre os movimentos migratórios; os problemas de moradia, dos desastres ambientais e da causa indígena. Tal posicionamento não significava, portanto, que estávamos apenas em busca de manifestações que praticassem o lugar da denúncia, mas, mais do que isso, que estivessem criando e se ressignificando esteticamente a partir da potência dos seus lugares de fala. Queríamos deslocar a ideia de centro, mexer com as margens, questionar as linhas, as fronteiras, as categorias e hierarquias do que era validado ou não e se tornava visível ou invisível na produção artística nacional. A gente estava propondo também, através desse trabalho de pesquisa, falar dos saberes e das produções desses outros Brasis que nos constituía.

C&: E no que a plataforma se transformou?

DL: A NoBrasil, em muito pouco tempo, construiu uma rede significativa nas mídias sociais, mas teve dificuldades em manter a produção de conteúdo pela escassez de investimentos, já que sempre foi difícil pensar um modelo de gestão que atendesse a alguns parâmetros éticos que eu estabelecia. Apesar de toda essa influência da política cultural nacional, nunca houve recursos públicos patrocinando a plataforma, sendo este um exemplo do contrassenso, do desmantelo e do sucateamento que o nosso setor da cultura sofre: a falência da nossa política começa no esvaziamento do discurso, no uso corrupto da linguagem e na morte da palavra.

Além disso, passei a olhar de forma mais crítica para o próprio projeto, seus objetivos e as relações que estabelecia, sendo impossível não questionar o próprio ambiente virtual e o que acreditávamos ser um processo de democratização da informação, tendo em vista os imbricamentos entre cultura digital e consumo. Foi inevitável também questionar o conceito de diversidade brasileira como política cultural, já que, com o aprofundamento das minhas pesquisas, vi que esta definição poderia se aproximar de uma atualização 2.0 do mito da democracia racial, projeto de embranquecimento oficial do governo nos séculos 19 e 20 e que invisibiliza a presença e contribuição das culturas negras no país a partir de políticas eugenistas. Apesar de tratarmos de um conceito expandido da diversidade e que não se concentrava apenas da pluralidade racial, fiz essa autocrítica. Como resultado, nasceu o projeto AfroTranscendence.

C&: Então, um ano depois do lançamento da NoBrasil, você apresentou o AfroT e logo depois o Diálogos Ausentes. Você considera esses dois últimos projetos como desdobramentos da NoBrasil?

DL: O AfroT nasce como primeiro projeto da NoBrasil a atender esse desejo de partir para ações offline. Ele é motivado por três questões centrais: como sou parte da sexta geração de mulheres negras de uma cidade chamada Mundo Novo, que fica no interior da Bahia (estado mais negro fora da África), passei a me questionar sobre o que aconteceria com os conhecimentos ancestrais da minha casa, caso a minha bisavó, na época com 102 anos, viesse a falecer. A segunda questão foi pensar como a minha produção teria sido influenciada se eu tivesse tido uma educação afrocentrada na escola e na universidade. A terceira era essa reflexão em nível coletivo: qual o impacto que isso teria na produção artística nacional? Tais questionamentos vieram, sem dúvida, com as observações sobre as presenças e ausências da produção negra que a NoBrasil nos trouxe e a percepção de que um lugar determinante de pesquisa para os nossos processos de criação é nossa própria casa. Com um programa que cruza ancestralidades e contemporaneidades, memórias e saberes, através de diversas palestras, performances, laboratórios, atividades e workshops, o projeto discute os efeitos dos epistemicídios e a busca por novas epistemologias que fundamentem as nossas criações.

Já o Diálogos Ausentes surge como um convite do Itaú Cultural depois da primeira edição do AfroT. Um ponto fundamental a ser lembrado sobre o AfroT é que ele, além da mobilização e visibilidade que gerou, acabou por ser, para o setor da cultura, um marco importante, por ter sido uma das primeira realizações a produzir uma intervenção institucional dessa natureza. O fato de ele ter sido realizado no Red Bull Station acabou por ampliar as discussões sobre as ausências da produção afro-brasileira nos museus, galerias e espaços culturais, principalmente a partir do texto que escrevi sobre curadoria como ferramenta de invizibilização dessas práticas.

Quando o Itaú Cultural é acusado de racismo por uso de blackface em uma peça de teatro de sua programação, deflagrando o racismo estrutural presente na instituição, vem o convite para que eu ajudasse a construir e mediar ciclos de encontros que acabaram por durar um ano e meio. Assim, no fim de 2016, encerramos o ciclo de encontros com uma exposição, que foi curada por mim e pela artista Rosana Paulino. E em 2017 fizemos uma nova montagem no Rio de Janeiro, sendo estas as primeiras ações com foco na cultura negra nos 30 anos de atividades dessa que é uma das maiores instituições culturais do país. A exposição ainda foi uma das primeiras exposições curadas por mulheres negras nesse circuito institucional.

C&: Existe um ponto de convergência entre AfroT e Diálogos Ausentes? E o que as experiências destes projetos te trazem como reflexão no momento político que vive o Brasil?

DL: Acho que o ponto de convergência dos três projetos é o fato de todos olharem para a produção de conhecimento: reunir saberes, perspectivas e outros modos de ver que nos ajude a compreender a nossa condição em um mundo que, apesar de sempre ter sido para os corpos racializados de extrema precariedade, aprimora cada dia mais suas ferramentas de exploração e sistemas de violação: O que é viver no mundo para o qual o devir será negro? Um mundo de corpos-moedas, onde a distribuição da violência chega a escala planetária? Onde as instituições contemporâneas atualizam e promovem a manutenção daqueles que foram ontologicamente destituídos de direitos? E onde a ausência de direitos é a prática do Estado frente aos conglomerados transnacionais? Onde os modos de uso da linguagem e a forma como estes forjaram todos aqueles categorizados como negros, corrompendo e desviando seu sentido original, caracterizam o império do falso de toda uma humanidade?

Acredito que avançamos em muitas discussões nos últimos quatro anos sobre o que está por trás seja do quesito invisibilidade seja do quesito precariedade ou escassez da produção. Na minha pesquisa de mestrado no departamento de Comunicação e Semiótica da PUC São Paulo, me propus a refletir justamente sobre esses sistemas de valores, os regimes de visibilidade e os efeitos de sentido que giram em torno das práticas artísticas contemporâneas afro-brasileiras. Percebo os projetos que realizei como laboratórios e, como tal, sinto que o próprio aprofundamento sobre as soluções que demos às problemáticas e a forma como nos relacionamos enquanto movimento-militante, nos empurra para a autocrítica e a reflexão.

Fabiana Lopes é curadora independente, baseada em Nova York e São Paulo, doutoranda em Estudos da Performance na Universidade de Nova York, na qual é bolsista do Corrigan Fellowship Program. Lopes tem interesse pela produção artística da América Latina e atualmente pesquisa a produção de artistas negros no Brasil.

Tópicos