Conversa com Gê Viana

Enfrentando os traumas da colonização

A artista brasileira fala sobre as origens indígena e negra como marcas de seu trabalho e explica sua predileção pelo trânsito entre diferentes linguagens.

C&AL: Além de sua origem indígena, há ainda sua ancestralidade negra. Como foi tratar esse tema no trabalho Sobreposição da história?

Venho de uma família afro-indígena. Minha bisavó paterna, a mãe Dica, era uma mulher preta retinta com práticas da cultura africana. Sou um capelobo, uma mistura preta indígena não retinta. Os ancestrais da minha família materna, os Anapuru-Muypurá, viviam das lavouras. Meu pai construiu a casa em que nasci com duas roças de arroz. Então foram essas as aberturas para compor esse trabalho. Participar da Bolsa Pampulha em Belo Horizonte, em 2019, que resultou no trabalho Sobreposição da história, foi como se alguém tivesse me tomado pelos braços e feito aquela brincadeira de rodar que, quando você pousa os pés no chão, está tonta. Essa é a tradução de sair do Maranhão, e isso se reflete na pesquisa que fiz. Tudo era muito diferente, muito urbano. Foi preciso eu me deslocar para áreas mais afastadas do centro de Belo Horizonte, perambular até ver a cana nos quintais e ser inspirada por ela.

Aconteceu como uma “miração” [N. da R.: visão espiritual que ocorre durante estado de consciência expandida com o uso da Ayahuasca], que tive ao relacionar a cana e o cristal selenita. Esses dois materiais têm superfícies bem parecidas, com fibras brilhantes. Usei a selenita para fazer uma lavagem do sofrimento dos corpos pretos nos canaviais. Como a selenita nutre e limpa, eu a ponho na garapa da cana e massageio os pés e as mãos das pessoas convidadas para essa ação/ritual. Isso está nos vídeos que compõem a obra, juntamente com as fotomontagens e textos colados nos sacos de ráfia.

C&AL: Seus trabalhos têm um viés político na medida que reescrevem o passado trágico com as ferramentas de que você dispõe. Como as linguagens e suportes ajudam a compor esse enfrentamento?

GV: Muitos dos meus trabalhos tratam de assuntos delicados por conta dos traumas da colonização e escravização dos corpos pretos e indígenas. Esses assuntos não se fecham na imagem final. É como o pensamento do parente Daniel Munduruku: “Trato do passado, mas reescrevendo o futuro dentro do presente”. Uma referência de enfrentamento é pensar os suportes que uso, que são como próteses de decolonização.

Defini o papel jornal para Paridades, porque não queria um papel “branco”. Da mesma forma, no Sobreposição da história, os sacos de ráfia que uso marcam as costas e a exploração da mão de obra negra que, como no passado, descarrega produtos da plantação escravista, ainda atual em muitos lugares. Sobrepus nessas superfícies fotomontagens que deslocam a narrativa histórica oficial e se transformam em um instrumento de fala, poder e protagonismo desses corpos. Estamos ascendendo reluzindo, vivos para proteger a nós e aos outros.

C&AL: No trabalho Corpografia do Pixo, você propõe uma espécie de tradução de linguagens. Que ideia vem ao transpor a grafia das pichações em movimentos de corpos registrados em fotos e vídeos?  

GV: Corpografias do Pixo, para além da dança, é uma ação micropolítica que coloca em foco não só o fenômeno da pixação*, mas também o corpo do indivíduo que deixou sua marca. Os símbolos criados pelos pixadores são subjetivos, como a estética de cada pixação que vai definir esse jeito vesgo e torto de dançar frente a eles. O ato de pixar é performático por si só. É arriscar-se, assim como o ato de duas mulheres projetarem seus corpos na rua durante a performance. A pixação incomoda, porque cultuamos a ideia da fachada branca cômoda e, quando vamos corpografar, isso fica mais visível pelas provocações e risos que as pessoas emitem. São várias aberturas para pensar como podemos ocupar a cidade.

[N. da R.: Os termos pixo, pixação e pixar, na grafia com x, são relativos ao tipo de pichação ilegal e transgressora, muitas vezes só legível para seus autores e seus grupos].

C&AL: Você já participou de uma série de residências artísticas. Qual a importância desses espaços/tempo de vivências?

Cada residência é uma fase de maturação e crescimento. As residências vêm para quebrar com a própria ideia de arte, para compreendê-la como uma prática da vida cotidiana, que não se desliga e liga. Você vai andando e criando, são estalos, é fluido. Eu levei uma machadada na testa em cada residência, com fissuras que fazem você andar mais leve e pisar com respeito na terra, com cuidado com o próximo e com a forma como você cria.

C&AL: O isolamento imposto pela Covid-19 interrompeu algum processo artístico?

GV: Eu ia dar continuidade à obra Sobreposição da História na cidade de Alcântara, no Maranhão, um território composto por mais de 300 quilombos, onde a população está sendo ameaçada pela instalação de uma base de lançamento de foguetes. Travamos uma luta juntos, para que esse possível despejo não aconteça. Esse meu projeto foi adiado. A quarentena veio para eu desacelerar e visitar as memórias da minha avó. Agora estamos construindo algo juntas.

Tânia Caliari é jornalista. Vive em São Paulo.

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