Artistas afrodiaspóricos e indígenas enfrentam condições totalmente diferentes daquelas encontradas pelos brancos. É preciso mudar esse contexto de representação no cenário das artes, rompendo com um campo simbólico permeado por hierarquias rígidas e cultos sólidos. Ocupar as curadorias é um passo importante.
Osalufa, Performance Ana Beatriz Almeida. Foto: Shai Andrade
Vagas, de Kássia Borges. cinco mil peças de cerâmica terracota com dimensões de 5cm x 3cm. Centro Cultural Cora Coralina, Goiânia, 2019. Foto: cortesia da artista
Tchidohun, Performance Ana Beatriz Almeida. Foto: Luara Dal Chiavon
A ideia do conhecimento usado como instrumento de dominação colonial é debatida no Sul Global desde a primeira metade do século 20. São referências os ensaios do filósofo martinicano Frantz Fanon, do bissau-guineense Amilcar Cabral e dos brasileiros Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Nos anos 2000, o sociólogo peruano Aníbal Quijano aprofundou a questão ao propor uma distinção fundamental entre colonialismo e colonialidade. Enquanto o conceito de colonialismo remete ao controle geopolítico de uma nação sobre outra, a colonialidade revela a complexa teia – racial, patriarcal, sexual, de saberes – de hierarquias e privilégios montada pelo jugo colonial. Como resultado: cinco séculos de opressão sobre a terra, os corpos e o conhecimento ainda em curso, mesmo após a descolonização.
Contexto plural
Guiada pelo espírito decolonial, a Bolívia promulgou uma nova Constituição, em 2009, na qual se reconhece como Estado Plurinacional composto por 36 nações originárias e diaspóricas. Deste modo, como é possível que o país tenha um Museu Nacional, estando inserido em contexto plural? A questão deu início ao processo de mudanças no Museu Nacional de Arte (MNA), em La Paz, colocado em prática entre março de 2019 e junho de 2020. Durante esse período, a instituição foi dirigida pelo filósofo e curador Max Jorge Hinderer Cruz, que estabeleceu como meta a decolonização, democratização e deselitização “tanto do Museu quanto das noções dominantes do que é arte”. A iniciativa ecoava não apenas o reposicionamento ético-político do país, mas de toda a América Latina nesse começo de século 21.
A primeira ação foi a abertura institucional. La Paz é uma cidade de maioria étnica Aimará. Vizinhos que diariamente passavam pela Calle Comercio com Socabaya, à porta do Museu Nacional, não se sentiam acolhidos naquele prédio colonial, joia do barroco andino do século 18. As visitas guiadas e gratuitas em língua Aimará, oferecidas a partir de 2019, giraram a chave de acesso ao Palácio de los Condes de Arana. Da interação do novo público com o mediador, também Aimará, resultou rica troca de percepções, como à luz da da intraduzibilidade do conceito de “arte” para a visão de mundo andina. “De que forma falamos de arte, se não temos a palavra arte disponível e se não concordamos quanto a seu significado? O que isso nos ensina sobre nossa compreensão da arte?”, reflete Hinderer Cruz.
Conceitos de arte
No início dos anos 1980, a curadora e artista visual Karajá, Kássia Borges, se sentia incomodada durante as aulas na Faculdade de Artes em Uberlândia (MG), no Sudeste brasileiro, nas quais o corpo docente definia o que era e o que não era arte. “Para nós Karajá tudo é arte. E o que ensinavam vinha de um conceito eurocentrado, que nasceu com a Modernidade. Saía a figura de Deus e entrava a do homem branco, justificando esteticamente o processo das invasões. O fato de não compartilharmos a mesma estética não exclui a nossa relação eterna com o belo. Nossos objetos podem ser sagrados, assim como têm utilidade no dia a dia, o grafismo está nos utensílios e nos adornos corporais. Mas o colonizador só enxerga um objeto exótico”, comenta Borges, hoje docente da Universidade Federal de Uberlândia, onde se graduou. “O papel dos curadores e das instituições, inclusive dos cursos de arte, é essencial nesse novo trajeto possível e emergencial”.
Vagas, de Kássia Borges. cinco mil peças de cerâmica terracota com dimensões de 5cm x 3cm. Centro Cultural Cora Coralina, Goiânia, 2019. Foto: cortesia da artista.
Na contramão acadêmica ocidental, a Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira começou a funcionar, em 2010. Sediada na cidade de Redenção, no Ceará, Nordeste brasileiro, a Unilab utiliza uma metodologia de ensino afrocentrada e multidisciplinar e recebe alunos de todos os países de língua portuguesa. Curadoria de arte é uma entre as disciplinas oferecidas nas Humanidades. Joana D’Arc de Sousa, curadora de artes visuais e docente no campus de Redenção, explica que uma instituição nos moldes da Unilab só foi possível ser criada dentro de uma política pública decolonial na educação, na cultura e nas relações internacionais dos governos brasileiros de 2003 a 2016.
Disputas enormes
Na avaliação de Sousa, os resultados dessas ações são hoje evidentes em uma maior inserção de artistas racializados no circuito das artes. Na direção artística das instituições e curadorias, no entanto, ainda há espaços a serem ocupados, aponta. “Estamos lidando com um campo simbólico que possui hierarquias rígidas, rituais e cultos sólidos, as disputas são enormes. Daí a necessidade de construirmos espaços de formação que possibilitem a entrada no mercado não só de artistas, mas de curadoras e curadores negros e indígenas”, completa.
A recente contratação de curadores nativos representou um avanço na perspectiva decolonial dos museus. Em Londres, o Tate Modern conta com o guatemalteco Pablo José Ramirez, um teórico cultural no campo das práticas da arte contemporânea indígena. No Brasil, Sandra Benites ocupa o cargo de curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo, a primeira curadora indígena a ocupar um posto tão importante nas instituições museológicas do país. Em Nova York, o Metropolitan Museum of Art tem em sua equipe Patrícia Morroquin Norby, mexicana do povo Purépecha. Em novembro de 2020, a Pinacoteca do Estado de São Paulo inaugurou a exposição “Véxoa: nós sabemos”, com curadoria de Naine Terena.
Mapeamento e cartografia
Dados do Mapeamento das Mulheres nas Artes na Bolivia (1919-2019), elaborado pelas pesquisadoras Mary Carmen Molina Ergueta e FernandaVerdosoto Ardaya para o projeto O século das mulheres, do Goethe-Institut, identificou 500 profissionais das artes plásticas nos últimos 100 anos. Um número baixo em se tratando de expressões artísticas clássicas, como a pintura e a escultura. As autoras do mapeamento advertem que “é necessário levar em consideração que as artes plásticas têm sido consideradas um ofício de homens”. Além disso, em muitos trabalhos sobre a história das artes publicados na Bolívia, especialmente até a década de 1990, pouca ou nenhuma menção sequer era feita a artistas plásticos bolivianos.
No Brasil, um mapeamento também está em curso com objetivo de cartografar os profissionais brasileiros dedicados à prática curatorial. O estudo é vinculado ao Laboratório de Curadoria de Exposições Bisi Silva da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, e operado pela Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição, coordenada pela Professora Carolina Ruoso, da UFMG, em colaboração com pesquisadores de arte de outras regiões do país. Nessa primeira fase de levantamento de dados, a Rede identificou 300 curadores atuando no país.
Conectar artistas africanos e afro-descendentes
Entre os exemplos de reexistência artística está a plataforma 01.01, definida pelos fundadores como dispositivo de educação decolonial: residência artística, escola curatorial e espaço de trocas sustentáveis entre artistas africanos e afrodiaspóricos (o artista fica com 70% a 80% do valor da obra). A primeira residência aconteceu em 2020, no Recôncavo Baiano, conectando artistas africanos e afro-descendentes.
A artista visual Ana Beatriz Almeida, cocuradora da plataforma, reforça que é preciso entender a escravidão e o racismo como um crime contra a humanidade de dimensões globais. Como resultado, “artistas afro-brasileiros, africanos e afrodiaspóricos estão presentes no mercado de arte em condições totalmente diferentes das encontradas por artistas brancos. Nosso papel principal é mudar o contexto de representação e comercialização destes artistas, conectando-os uns com os outros e com as comunidades que resistiram a escravidão e ao racismo”.
Fim do processo de ocidentalização
Passo a passo, a arte vem traçando suas estratégias decoloniais – conceito que se distingue de “descolonial”, termo associado à descolonização, ou seja, à desocupação das nações invadidas em um processo, portanto, já findo. Nesse novo cenário, o verbo-chave é reexistir, aponta o semiólogo argentino Walter Mignolo. “O projeto global ocidentalizador entrou em colapso no início do século 21. Isso não significou o fim do Ocidente, mas apenas o fim da ocidentalização em seu último intento: a globalização neoliberal. A ocidentalização do mundo não é mais possível, porque um número cada vez maior de pessoas está resistindo a ser integrado nela. Ao contrário, as pessoas começam a reexistir”, resume Mignolo no ensaio A colonialidade está longe de ter sido superada, logo a decolonialidade deve prosseguir, produzido para o evento online Arte e Descolonização com organização do Museu de Arte de São Paulo.
Anna Azevedo é jornalista, cineasta e artista interessada na interseção entre cinema e artes visuais.