Inaugurando o calendário da galeria A Gentil Carioca, Abre Alas reúne vários artistas, como Emilia Estrada, Naomi Shida e Marlon de Paula, com o objetivo de unir cultura popular e arte visual. O evento celebra a interseção entre o carnaval e a arte contemporânea, promovendo um diálogo entre corpos, território e cultura.
Marlon de Paula, Como Costurar às Margens?, 2020. Cortesia do artista.
Vista da exposição, Abre Alas, 2024. Foto: A Gentil Carioca/Pedro Agilson.
Emilia Estrada, rumores áridos de rumos úmidos, 2022. Cortesia da artista.
Naomi Shida, TRANSCAMINHAR, 2022. Cortesia da artista.
Abre Alas é uma exposição não comercial que acontece desde 2005 em data próxima ao carnaval, inaugurando o calendário de exposições da galeria A Gentil Carioca no Rio de Janeiro. Agrade Camíz e Daniela Castro realizaram a curadoria da 19ª edição, com o intuito de que fosse uma vitrine para artistas de todo o Brasil e do mundo. O evento combina cultura popular e arte visual, que, historicamente, foi utilizada como uma das formas de criar distinção. Assim, a galeria organizou uma festa monumental nas imediações, com música e pessoas fantasiadas, semelhante a um evento carnavalesco.
No momento em que entrei em um dos prédios onde a exposição acontecia três obras chamaram a minha atenção pela maneira como abordavam a temática do corpo-terra. A primeira foi a de Emilia Estrada, uma artista e pesquisadora argentina residente no Rio de Janeiro. Com uma escala enorme, a obra Rumores áridos de rumbos húmedos (2022) faz parte da pesquisa iconográfica da artista sobre as expedições marítimas europeias do século XVI. A artista buscou subverter alguns mitos da colonização através da cartografia de cursos d’água e, nesta obra, ela cartografou os caminhos dos rios que levavam à Ciudad de Los Césares, uma cidade mítica da América do Sul. Este lugar, também conhecido como Cidade Encantada da Patagônia, supostamente se encontra em um vale da Patagônia, em algum lugar da Cordilheira dos Andes, entre o Chile e a Argentina. Reza a lenda que nenhum conquistador foi capaz de acessar essa cidade mítica, graças à resistência dos povos originários.
Já Naomi Shida expôs três trabalhos que teciam, metafórica e literalmente, um discurso sobre o corpo e suas transições, além de invocar a percepção de textura. Um deles é uma bandeira com uma mulher trans mapeada por bordados em cor vermelha, intitulada Passagem, o atravessar do corpo (2022). Em outro, uma obra que parecia um livro de artista, feita em tecido e também bordada em branco e vermelho. Na obra livro, que estava aberto com as páginas-dobraduras expostas, era possível ler “Objeto, Corpo, Abjeto”, sendo esta última palavra com a letra A em vermelho. Em outra página, via-se “Transcaminhar” escrito em vermelho. Em outra, havia duas cadeiras – uma vermelha e a outra branca – e a palavra “diálogos”. O conjunto das obras parece sugerir que, construir um corpo território é uma vivência coletiva e orgânica, com suas tensões e encontros. Reforçando a análise da galeria, Naomi Shida “explora a representação do seu corpo trans com ascendência asiática como forma de compreensão e afirmação desse espaço de mudanças físicas, afetivas e simbólicas.”
Outra obra focada no discurso sobre o corpo foi a de Marlon de Paula, artista mineiro, da região do Vale do Rio Doce. No seu trabalho Como costurar às margens (2020), ele costura metaforicamente as erosões rochosas do solo com linhas, usando intervenções land-art com roupas desgastadas doadas pela comunidade local. É notório que Minas Gerais tem sofrido com a exploração de minérios desde o início do período colonial no Brasil e Marlon se dedica a cerzir as falhas deste corpo social.
Em 2019, esse artista iniciou uma costura no Córrego do Lenheiro, que atravessa a cidade histórica de São João Del Rei, também em Minas Gerais. A partir do início do século XX, os esgotos foram direcionados para o leito do córrego, que também sofreu com aterros, mudança do curso original da água e invasões de suas margens. Assim, as costuras de Marlon visam restaurar o solo desgastado pela mineração e também “costurar para criar um realismo fantástico para este curso d’água tão importante para cidade ser notado” diz. Seu trabalho de destaque das fissuras é, em suas palavras, “realizar uma costura geográfica para acalmar a terra.”
Seguindo a ética carnavalesca do contexto da exposição, o meu método de análise foi o atravessamento – onde carnaval atravessa arte contemporânea, corpo atravessa o território e eu atrevessando tudo isso.
Rachel Souza é pós-doutoranda no PPGAV – UFRJ, Doutora em Sociologia pelo IUPERJ e Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF. Desenvolve pesquisas que correlacionam Arte, antropologia visual, assimetrias coloniais, política e gênero e atualmente pesquisa a artista Moçambicana Cassi Namoda. Fundadora e integrante do Mentoria Com Fritas, laboratório de pesquisa e mentoria em Artes Visuais.