O artista Jaime Lauriano aborda em suas obras tanto a ditadura militar, que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, quanto temas como a disputa de terra e o abuso de autoridade. Seu trabalho é fruto de uma pesquisa profunda em bibliotecas e arquivos públicos. “A essência do meu trabalho é investigar a questão da violência no Brasil. Busco no passado respostas para o que acontece no presente”, define.
A obra 'trabalho' (2017) denuncia objetos que retratam a naturalização da escravidão no Brasil, como camisetas e calendários.
Em 'combate #1', de 2017, Lauriano ilustra com ferramentas e instrumentos utilizados por trabalhadores rurais o contorno da costa brasileira e as divisões das capitanias hereditárias do período colonial.
'nessa terra, em se plantando, tudo dá', obra de 2015. Segundo o artista, a muda de pau-brasil vai crescer dentro da estufa até as raízes e galhos destruírem a estrutura de madeira e vidro.
'o brasil', vídeo de 2014: matérias de jornais e propagandas do governo federal rememoram o trauma da ditadura militar que vigorou no Brasil por mais de duas décadas, entre 1964-1985.
No video 'morte subita' (2014), pessoas encobrem o rosto com a camiseta da seleção brasileira, campeã da Copa do Mundo de 1970, enquanto a narrador le a lista dos mortos e desaparecidos politicos naquele anos.
C& América Latina: Por que ao voltar, em 2013, à cena artística, depois de uma interrupção [para trabalhar em campanhas políticas], você resolveu falar sobre o regime militar e a Copa de 1970 na individual “Impedimento” (2014)?
Jaime Lauriano: Voltei a trabalhar com arte para tentar entender a questão da violência no Brasil e como ela está presente na construção do nosso país, da nossa identidade. Em 2013, participei das manifestações do Movimento Passe Livre, duramente reprimidas pela Polícia Militar, o que me levou a pensar como as marcas da ditadura estão presentes na sociedade até hoje, principalmente na represália aos movimentos sociais. Além disso, em 2014 o Brasil sediaria a Copa do Mundo, um momento controverso onde uma parcela da população brasileira questionou os gastos com o evento e ouvimos o jingle ufanista “Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor…”. Isso tudo acabou inspirando dois vídeos em uma tentativa de buscar no passado respostas para o que acontece hoje.
C&AL: Quais são esses vídeos?
JL: Um deles é Morte Súbita, no qual um grupo de pessoas cobre o rosto com a camiseta da seleção brasileira de 1970 enquanto, ao fundo, o narrador lê uma lista com nomes de 22 mortos e desaparecidos naquele ano. Em 1970, quando vencemos a copa do México, foi também o ano no qual mais gente morreu nos porões da ditadura. Já O Brasil é uma colagem de matérias de jornais publicadas entre 1964 e 1968 e também de propagandas oficiais do governo federal durante o regime de exceção. Entre outras coisas, mostro como a imprensa foi um ator de peso a favor do golpe civil-militar de 1964. Para fazer este trabalho, assisti mais de 700 filmes no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, ao longo de um ano.
C&AL: A questão da negritude surge com mais força em sua obra na individual “Autorretrato em Branco sobre Preto”, em 2015?
JL: A questão da negritude sempre esteve presente no meu trabalho, mas em 2014 ela emergiu com mais força e desde então venho tentando entender o que é ser negro no Brasil. Nessa exposição falo da Lei Áurea como um mecanismo do opressor para mascarar o trauma da escravidão, que não foi discutido e reparado no Brasil. O resultado é que essa realidade de opressão e desigualdade em relação à população negra continua a mesma. O Brasil lidera o ranking de assassinatos no mundo, aqui se mata mais gente por ano do que nas guerras da Síria e do Iraque juntas. E de cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. A violência e o racismo estão introjetados no país e a gente precisa mexer nessa ferida se quiser construir uma sociedade mais justa.
C&AL: Como foi participar da Bienal de Bamako, no Mali, em 2015?
JL: Foi uma experiência muito forte, onde inaugurei na minha cabeça uma nova forma de pensar a África. Após visitar o Mali e o Marrocos, percebi que aqui a gente tem uma África processada, porque os africanos precisaram se reinventar e criar uma outra possibilidade de existência quando chegaram ao Brasil para trabalhar como escravos. Quero voltar para ficar um tempo maior, viajar por outros países e investigar as semelhanças e diferenças entre aquele continente e o nosso.
“nessa terra, em se plantando, tudo dá”, obra de 2015. Segundo o artista, a muda de pau-brasil vai crescer dentro da estufa até as raízes e galhos destruírem a estrutura de madeira e vidro.
A questão da negritude sempre esteve presente no meu trabalho, mas em 2014 ela emergiu com mais força e desde então venho tentando entender o que é ser negro no Brasil.
C&AL: Prêmios como Marcantonio Villaça, que você recebeu recentemente, foram ao longo da história majoritariamente concedidos a artistas brancos. O mesmo se dá na seleção para grandes exposições no país. Isso tende a mudar?
JL: Costumo dizer que não ganhei esse prêmio sozinho: ele é resultado de uma luta de três gerações de artistas negros contemporâneos, onde pontuam nomes como Emanoel Araújo, Rubem Valentim, Eustáquio Neves, Rosana Paulino, Sônia Gomes, Paulo Nazareth, Ana Lira, Michelle Mattiuzzi, Moisés Patrício…. Essa luta avançou nos últimos anos, a gente vem ganhando voz em eventos como a Bienal de Veneza e acho difícil silenciá-la agora. Mas não podemos ignorar que, a exemplo do Congresso Brasileiro, ainda temos um circuito de arte majoritariamente branco, masculino e que não representa a sociedade brasileira como um todo.
C&AL: É possível desenvolver um trabalho com teor social e político fazendo parte de uma engrenagem da indústria cultural, no caso, uma galeria de arte? Como lidar com essa contradição?
JL: Sim, a partir do momento em que você entende que o trabalho do artista não acontece apenas por meio de um objeto. Vejo a obra como uma mediação para que eu possa acessar outros lugares, como os grandes veículos de imprensa, e assim passar minha mensagem. Sem contar que também exponho as obras em espaços mais acessíveis, no caso, no meu site e nas redes sociais. Enfim, a galeria é uma instância e não “a” instância.
Ana Paula Orlandi é jornalista e escreve sobre cultura e comportamento há mais de duas décadas. Atualmente faz mestrado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.