Ontem e hoje

As metamorfoses na recepção da obra Seydou Keïta no Brasil

Exposição em São Paulo procura revelar a multiplicidade de intercâmbios entre as culturas tradicionais da África e aquela do colonizador em signos que aparecem nas imagens de Keïta.

Multiplicidade de intercâmbios

A exposição do Instituto Moreira Salles – aberta em São Paulo até 29 de julho e seguindo em 11 de agosto para o Rio de Janeiro, onde fica até janeiro de 2019 – procura evitar aproximações com o tema pelo viés identitário, como conta Samuel Titan Jr., que assina a curadoria junto com Jacques Leenhardt. A intenção parece ser mais revelar a multiplicidade de intercâmbios entre as culturas tradicionais da África e do colonizador em signos que aparecem nas imagens de Keïta. Um claro exemplo são os tecidos usados na composição dos retratos ou vistos nas estamparias femininas, parte produzida por uma empresa holandesa que disseminou essa tradição têxtil pela África Ocidental no final do século 19 – depois de se apropriar dos batiques da Indonésia, então colônia holandesa. Ou na notória ocidentalização dos trajes, especialmente dos homens, que aparecem com ternos ou uniforme militar não muito distintos da moda europeia ou norte-americana no pós-guerra, como nota Anne Grosfilley em texto escrito para o catálogo Têxtil e Moda no Mali pela lente de Seydou Keïta.

O período de atuação do fotógrafo malinês entre 1948 e 1962, quando manteve um estúdio particular em Bamaku, então capital do Sudão Francês, é propício para tal reflexão sobre múltiplas apropriações culturais. O rico acervo desses 14 anos revela um diverso panorama social do país nos anos anteriores a sua independência, quando indícios da modernidade já se apresentavam, por exemplo, por meio de certos adereços tecnológicos. Um dos maiores símbolos da difusão do poder colonial, o rádio é um desses objetos incorporado nos retratos de pessoas mais jovens, como o casal que se abraça em pose de intimidade enquanto apoiam os braços sobre o aparelho.

Mas para além de um registro social do período, o que de imediato chama atenção nas fotografias de Keïta é o apuro estético na construção das cenas, revelando uma preocupação formal que já indicava uma consciência da noção de autoria. Nesse sentido, a imagem incluída logo no percurso inicial, em que aparece assinando uma fotografia feita por ele, apoiado nas costas de um homem branco, carrega um forte simbolismo sobre a recepção da obra do fotógrafo-autor que até pouco tempo antes era apresentado em uma exposição em Nova York como “fotógrafo desconhecido.”

Caminho híbrido de apropriações

Entre o conjunto de 130 imagens, todas em preto-e-branco, a variedade de formatos e ampliações é outra escolha interessante para indicar os diversos contextos em que sua obra foi apresentada. Lá estão desde as raras edições vintage em 18 x 13 cm, ampliadas pelo próprio Keïta e no formato utilizado por ele na comercialização para seus clientes; em 50 x 60 cm, ampliações feitas já nos anos 1990 em Paris, quando sua obra já estava inserida no circuito de galerias e museus, seguindo tal padrão; e outras quase no tamanho de murais, de 1,80 x 1,30m, quando passa a ganhar mais valor e prestígio internacional.

Também presente na mostra está um documentário gravado em 1998 que revela o artista no auge desse reconhecimento. Já aposentado há mais de 20 anos do cargo de fotógrafo oficial do governo, que o obrigou a encerrar as atividades no estúdio, em 1962, ele foi convidado pela diretora Brigitte Cornand a produzir uma sessão de retratos como fazia antigamente. O que poderia ser uma representação artificial do “fotógrafo em ação”, encenada para uma produção francesa, acaba se revelando um valioso registro do processo de Keïta. E, ainda que pelo intermédio europeu, não deixa de ser um documento a respeito do próprio trabalho criado por ele mesmo – outro elemento no caminho híbrido de apropriações presentes em sua obra.

Nathalia Lavigne é jornalista, curadora e pesquisadora, mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. É membro do grupo de pesquisa Estéticas da Memória no Século 21 e desenvolve um trabalho sobre colecionismo digital e imagens de obra de arte no Instagram.

Seydou Keïta, Instituto Moreira Salles (IMS-SP), até 29/7/2018. Galeria 2. Avenida Paulista, 2424. São Paulo.

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