Exposição em São Paulo procura revelar a multiplicidade de intercâmbios entre as culturas tradicionais da África e aquela do colonizador em signos que aparecem nas imagens de Keïta.
Sem título. Bamako, Mali, 1949-1962. Seydou Keïta/ caac – The Pigozzi Collection, Genebra.
Um intervalo de duas décadas separa a atual retrospectiva de Seydou Keïta (1921-2001), no Instituto Moreira Salles (IMS-SP), de duas importantes participações suas em mostras no Brasil, em 1998. Naquele ano, o fotógrafo malinês – reconhecido no início dos anos 1990 por uma valiosa produção de retratos em estúdio do período que antecedeu a independência no país, em 1960, – foi um dos artistas da 24ª Bienal de São Paulo, histórica edição dedicada à Antropofagia, e da mostra África por ela mesma, na Pinacoteca do Estado. Quatro anos antes, Keïta havia realizado uma grande exposição na Fundação Cartier, em Paris – contribuição decisiva para sua consagração tardia, processo que ecoava também na cena institucional brasileira.
Apesar da importância dos eventos e do reconhecimento global naquele período, a obra de Keïta não despertou um particular interesse no Brasil. Na cobertura da imprensa sobre a Bienal da Antropofagia, seu nome aparece como uma breve menção entre os artistas incluídos no núcleo Roteiros da África, parte do segmento criado pelo curador Paulo Herkenhoff para abordar uma produção internacional descentralizada, com sete eixos temáticos. Embora o pós-colonialismo fosse uma das vertentes teóricas daquela edição, as discussões sobre a arte de matriz africana e o diálogo com uma produção afro-brasileira só iriam reverberar por aqui muitos anos depois.
Forma estigmatizada
Uma reportagem publicada na revista da Folha de São Paulo naquela época sobre a coletiva na Pinacoteca traz indícios interessantes da forma estigmatizada como o assunto ainda era tratado. Com o título “Você conhece a África?” e ilustrada com uma foto de Keïta, a matéria aparece em uma seção com o nome de “Plural”, ao lado uma coluna “GLS”. A aproximação de assuntos tão distintos pelo viés da diversidade já seria questionável. Mais surpreendente, no entanto, são os anúncios eróticos que cercam a página do texto sobre a exposição – uma edição que no mínimo não leva em conta o histórico de erotização e fetichismo da cultura africana e o risco de se associar os dois temas.
Exatos 20 anos mais tarde, abordagens incautas como essa talvez pareçam impensáveis, especialmente quando os debates sobre questões raciais e a matriz cultural africana na arte brasileira se inseriram nos discursos institucionais. Embora a obra de Seydou Keïta não se encaixe na discussão associada a um contexto brasileiro, é interessante observar que sua retrospectiva acontece junto ao calendário do Masp com uma extensa programação anual dedicada aos intercâmbios afro-atlânticos. E no momento em que o CCBB exibe a mostra itinerante Ex Africa, com a produção de 18 artistas contemporâneos do continente e dois afro-brasileiros.
Multiplicidade de intercâmbios
A exposição do Instituto Moreira Salles – aberta em São Paulo até 29 de julho e seguindo em 11 de agosto para o Rio de Janeiro, onde fica até janeiro de 2019 – procura evitar aproximações com o tema pelo viés identitário, como conta Samuel Titan Jr., que assina a curadoria junto com Jacques Leenhardt. A intenção parece ser mais revelar a multiplicidade de intercâmbios entre as culturas tradicionais da África e do colonizador em signos que aparecem nas imagens de Keïta. Um claro exemplo são os tecidos usados na composição dos retratos ou vistos nas estamparias femininas, parte produzida por uma empresa holandesa que disseminou essa tradição têxtil pela África Ocidental no final do século 19 – depois de se apropriar dos batiques da Indonésia, então colônia holandesa. Ou na notória ocidentalização dos trajes, especialmente dos homens, que aparecem com ternos ou uniforme militar não muito distintos da moda europeia ou norte-americana no pós-guerra, como nota Anne Grosfilley em texto escrito para o catálogo Têxtil e Moda no Mali pela lente de Seydou Keïta.
O período de atuação do fotógrafo malinês entre 1948 e 1962, quando manteve um estúdio particular em Bamaku, então capital do Sudão Francês, é propício para tal reflexão sobre múltiplas apropriações culturais. O rico acervo desses 14 anos revela um diverso panorama social do país nos anos anteriores a sua independência, quando indícios da modernidade já se apresentavam, por exemplo, por meio de certos adereços tecnológicos. Um dos maiores símbolos da difusão do poder colonial, o rádio é um desses objetos incorporado nos retratos de pessoas mais jovens, como o casal que se abraça em pose de intimidade enquanto apoiam os braços sobre o aparelho.
Mas para além de um registro social do período, o que de imediato chama atenção nas fotografias de Keïta é o apuro estético na construção das cenas, revelando uma preocupação formal que já indicava uma consciência da noção de autoria. Nesse sentido, a imagem incluída logo no percurso inicial, em que aparece assinando uma fotografia feita por ele, apoiado nas costas de um homem branco, carrega um forte simbolismo sobre a recepção da obra do fotógrafo-autor que até pouco tempo antes era apresentado em uma exposição em Nova York como “fotógrafo desconhecido.”
Caminho híbrido de apropriações
Entre o conjunto de 130 imagens, todas em preto-e-branco, a variedade de formatos e ampliações é outra escolha interessante para indicar os diversos contextos em que sua obra foi apresentada. Lá estão desde as raras edições vintage em 18 x 13 cm, ampliadas pelo próprio Keïta e no formato utilizado por ele na comercialização para seus clientes; em 50 x 60 cm, ampliações feitas já nos anos 1990 em Paris, quando sua obra já estava inserida no circuito de galerias e museus, seguindo tal padrão; e outras quase no tamanho de murais, de 1,80 x 1,30m, quando passa a ganhar mais valor e prestígio internacional.
Também presente na mostra está um documentário gravado em 1998 que revela o artista no auge desse reconhecimento. Já aposentado há mais de 20 anos do cargo de fotógrafo oficial do governo, que o obrigou a encerrar as atividades no estúdio, em 1962, ele foi convidado pela diretora Brigitte Cornand a produzir uma sessão de retratos como fazia antigamente. O que poderia ser uma representação artificial do “fotógrafo em ação”, encenada para uma produção francesa, acaba se revelando um valioso registro do processo de Keïta. E, ainda que pelo intermédio europeu, não deixa de ser um documento a respeito do próprio trabalho criado por ele mesmo – outro elemento no caminho híbrido de apropriações presentes em sua obra.
Nathalia Lavigne é jornalista, curadora e pesquisadora, mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. É membro do grupo de pesquisa Estéticas da Memória no Século 21 e desenvolve um trabalho sobre colecionismo digital e imagens de obra de arte no Instagram.
Seydou Keïta, Instituto Moreira Salles (IMS-SP), até 29/7/2018. Galeria 2. Avenida Paulista, 2424. São Paulo.