A escritora e pesquisadora alemã Fatima El-Tayeb explica como as instituições europeias se apropriaram consistentemente das personalidades históricas negras, ao mesmo tempo que negavam aos africanos sua própria história.
À esquerda: Nefertiti, Museu Novo, Berlim. À direita: capa de Black Women in Antiquity (Mulheres negras na Antiguidade), organizado por Ivan Van Sertima, 1988.
A mais famosa mulher da África na Antiguidade – provavelmente uma das mulheres mais famosas da Antiguidade e ponto – é quase alemã. Na verdade, todo ano, centenas de milhares de pessoas viajam para a capital alemã, onde ela já vive há um século, para admirar seu famoso retrato. É claro que estou falando da rainha egípcia Nefertiti.
O busto de Nefertiti está alojado no Museu Novo de Berlim, na famosa Ilha dos Museus, e o governo alemão se recusa terminantemente a devolvê-lo ao Egito, apesar de as autoridades egípcias estarem fazendo precisamente essa demanda desde 1925. Para justificar sua negativa, os representates do governo alemão não afirmam que a Nefertiti seja um tesouro nacional, mas que ela pertence ao mundo. Quando a Alemanha declinou a solicitação egípcia pela última vez, em 2011, o subsecretário da Cultura declarou: “A arte é parte do patrimônio humano universal e – onde quer que esteja – deve ser tornada acessível ao maior número possível de pessoas”. Acontece que essa acessibilidade existe mais em Berlim que no Cairo – pelo menos a acessibilidade para as pessoas que contam, já que as de muitas partes do mundo não têm permissão para entrar na Europa, especialmente as pessoas provenientes das regiões das quais as obras de arte que enchem os museus europeus foram roubadas na época do colonialismo.
E foram roubadas, sim; as leis coloniais que as nações europeias citam para impor suas demandas contemporâneas foram baseadas no direito do Ocidente de explorar os “racialmente inferiores”. O museu universal esclarecido que celebrava o humanismo europeu só se tornou possível porque as potências europeias puderam adquirir arte a troco de nada. E eles continuam a lucrar: o Museu Novo sem a Nefertiti (ou o Museu de Pérgamo sem o Portão de Ishtar) provocaria um buraco na indústria turística berlinense e poderia custar à Ilha dos Museus seu status de patrimônio da humanidade da Unesco. Isso tampouco é uma coisa do passado: a arte está se tornando um investimento importante para os ricos, mas também para as multinacionais envolvidas diretamente na exploração neocolonial. O Iraque não foi saqueado apenas durante o século 19, mas também após a invasão dos Estados Unidos em 2003. Enquanto proteger a arte pré-islâmica do Estado Islâmico fornece uma legitimação adicional para o Ocidente, o lucrativo comércio de arte do Iraque e da Síria, vendida principalmente para a Europa, os Estados Unidos e os países do Golfo, continua tão inexplorado como a destruição de lugares históricos para a construção de bases norte-americanas.
A questão dos artefatos roubados constitui uma pequena mas significativa parte do debate sobre o legado colonial. As 15 nações do Caribe que formam a Caricom abordaram a questão diretamente em 2013, quando convidaram a Europa a um “diálogo de reparação” sobre as sequelas da escravidão, do colonialismo e do genocídio (demanda que permanece sem resposta). O imenso valor financeiro de peças roubadas, como o busto de Nefertiti, estimado em 350 milhões de euros, levanta a questão das reparações financeiras, mas o colonialismo também incluiu uma lavagem cerebral cultural sistemática: em escolas estatais e de missionários, os “nativos” eram ensinados a respeito da superioridade europeia e de sua própria inferioridade e falta de cultura (enquanto os colonizadores roubavam sistematicamente tantos artefatos culturais supostamente inexistentes quanto eram capazes de carregar). A África, especialmente, virou o continente “sem história”. Séculos e até milênios de intercâmbio cultural foram apagados dos registros históricos. Entretanto, evidências da cultura africana, como o busto de Nefertiti, são aclamadas como “patrimônio cultural universal”, que na verdade é entendido como em grande parte europeu. É significativo que a Ilha dos Museus, que abriga o busto, seja dedicada à arte “da Europa e do amplo Mediterrâneo”, enquanto os artefatos africanos e outros “não europeus” serão concentrados no Fórum Humboldt. A inclusão furtiva do “amplo Mediterrâneo” no patrimônio cultural europeu é particularmente rústica, pois atualmente o Mediterrâneo representa uma divisão cultural, econômica, religiosa e política que marca literalmente a fronteira mais fatal do mundo (em especial para as pessoas do “amplo Mediterrâneo”). Essa também é a continuação de uma antiga tradição ocidental de separar o Egito do resto do continente (insistindo em que, se ele produziu uma civilização significativa, não pode ser nem africano nem negro).
Na escrita e na apresentação de narrativas históricas dominantes – das quais os museus são os lugares primários – trata-se tanto de esconder quanto de tornar visível, de fingir que a história se desenrola automática e inevitavelmente, que o presente resulta necessariamente de um passado que nos conduziu exatamente a este aqui e agora, de apagar as alternativas do passado que apontam para a possibilidade de futuros diferentes. Mas também sempre existem contranarrativas que nos lembram que nem o passado nem o futuro estão gravados em pedra. Essas narrativas oferecem o contexto necessário para compreender as verdades históricas dominantes como sendo subjetivas e servindo a interesses particularistas, interesses que podem e devem ser desafiados. O livro Black Women in Antiquity (Mulheres negras na Antiguidade), de Ivan Van Sertima, é uma dessas contranarrativas. Ele traça a longa e contínua história das mulheres negras na África e na Diáspora, e permite que reclamemos Nefertiti, não meramente como um troféu colonial, mas como parte desta – nossa – história.
Fatima El-Tayeb é uma historiadora e escritora alemã, e atualmente professora de Literatura e Cultura Afro-americanas e diretora do Departamento de Estudos Críticos de Gênero na Universidade de San Diego, Califórnia, USA.
C& Center of Unfinished Business (Centro de Negócios Inacabados) esteve em cartaz na Galeria do ifa-Galerie, Berlim, Alemanha, até 30 de março de 2018.
Livro: Black Women in Antiquity (Mulheres negras na Antiguidade), organizado por Ivan Van Sertima, 1988.
1) Instituições culturais: os europeus investiram no desenvolvimento de instituições como museus e centros de pesquisa, a fim de preparar seus cidadãos para um entendimento de sua história imperialista que os definisse como administradores e beneficiários da escravidão. Não há instituições como essas no Caribe, onde os crimes foram cometidos e as vítimas permaneceram privadas de seus direitos a respeito de suas experiências institucionais e culturais e da memória. Essa crise precisa ser remediada.
2) Privação cultural: o efeito cultural primário da escravidão foi romper e erradicar o compromisso africano com sua própria cultura. A cultura africana foi criminalizada e a base cultural de sua identidade, destruída. Os africanos foram desculturalizados e até hoje continuam empobrecidos em relação à sua legitimidade cultural e organizações institucionais de apoio apropriadas. Esses tópicos representam o legado colonial da escravidão e precisam ser endereçados.
Comissão de Reparações Caricom 2013.
Traduzido do inglês por Renata Ribeiro da Silva.