Um dos curadores da exposição Histórias Afro-Atlânticas (MASP/Instituto Tomie Ohtake), o antropólogo Hélio Menezes fala sobre o entendimento de arte afro-brasileira, tema que pesquisa desde 2011, e como o conceito foi abordado nessa e em outras mostras nos últimos anos.
Maria Auxiliadora, Candomblé, 1966-68. Acervo do MASP. Doação Lais H. Zogbi Porto e Telmo Giolito Porto, 2018.
Obras de Dalton Paula em cartaz no MASP. À esquerda: Zeferina, 2018. Coleção do artista. Foto: Paulo Rezende. À direita: João de Deus Nascimento, 2018. Coleção do artista. Foto: Paulo Rezende.
Rosana Paulino, Bastidor, 1997. Coleção: Fernando Assad Abdalla. Foto: divulgação.
C&AL: A parte da exposição no Instituto Tomie Ohtake começa com uma grande cronologia a partir da Lei Áurea (1888) e inclui episódios recentes, como o assassinato da Marielle Franco. Qual a importância dessa compilação de fatos e deste marco dos 130 anos da abolição na conceituação da mostra?
Hélio Menezes: A cronologia é resultado de uma pesquisa iniciada pelo Flávio Gomes e a Lilia Schwarcz, da qual também participei, que resultou no livro Dicionário da Escravidão e Liberdade (Editora Companhia das Letras). Para a exposição, ampliamos e incluímos outros fatos. Essa é uma mostra que exige do espectador um repertório histórico, por isso sua importância. Tanto no Masp quanto no Tomie, não seguimos uma apresentação das obras em termos cronológicos, geográficos ou por linguagem. Então era importante esse pé no chão temporal, até porque é uma exposição que tem uma pretensão de questionar as maneiras como vem sendo contada a história do Brasil.
Até os anos 1980, a historiografia brasileira era bastante conservadora em pouco se dedicar, por exemplo, a micro-histórias de escravizados e formação de quilombos. De modo geral, nas escolas, a escravidão é apresentada como se quase não tivesse havido resistências. Nesse sentido, os fatos inseridos na cronologia dizem respeito a momentos-chave sobre revoltas e insurreições escravas pelo eixo Afro-Atlântico, a criação de movimentos sociais, fatos importantes dessa região que não entram no nosso livro de história. O 13 de Maio de 1888, que completa 130 anos de uma abolição informal, incompleta e conservadora, é uma data inescapável. Mas o que estava em nosso horizonte é que esses 130 anos não fossem uma data de celebração, um questionamento discutido há muito discutido pelos movimentos negros brasileiros. Igualmente inescapável em 2018 são os 220 anos da Conjuração Baiana (1798), por isso pedimos ao Dalton Paula para realizar o retrato do João de Deus, um dos líderes do movimento.
C&AL: Como foi o processo de uma curadoria entre cinco pessoas e sua participação?
HM: Essa é uma exposição com muitas vozes. A Lilia Schwarcz e o Adriano Pedrosa iniciaram como os nomes principais, e Tomás Toledo como curador-assistente, e depois eu e o Ayrson Heráclito fomos convidados. A Lilia e eu já trabalhamos há muito tempo juntos, ela me orientou no mestrado. Eu tive uma sala com maior participação no núcleo Ativismos e resistências, fui convidado com essa proposta. Mas desde o começo a ideia era que fosse uma exposição com diferenças grandes e explicitadas, tanto entre as mostras do Tomie e a do Masp, como entre os núcleos. É possível perceber uma polifonia significativa. A intenção era levar a sério histórias no plural, a que se chegou por meio de muitos consensos. E quando eles não foram amarrados, concluímos que não deveriam ser retirados, pelo contrário.
C&AL: Qual foi sua principal motivação para pesquisar sobre os diferentes entendimentos da arte afro-brasileira?
HM: Sempre me chamou muito atenção no Brasil, especialmente por ser baiano, como essas categorias foram sendo construídas (arte afro-brasileira, arte negra, arte diaspórica…) e como foram mudando ao longo do tempo. A minha dissertação tem um escopo bastante alongado, vai do final do século 19 ao século 21, percorro o século 20 da produção intelectual e institucional sobre esses termos. Aqui no Brasil, me chamou atenção que nem sempre foi evidente o componente da autoria ao se falar de arte afro-brasileira. Mas essa, no caso, não é uma exposição feita inteiramente por artistas negros. Por exemplo, já fui questionado algumas vezes por que o Andy Warhol estava em uma exposição como essa, se estávamos tentando incluir cotas para brancos. Não se trata disso. A autoria foi um dos aspectos norteadores dessa exposição, mas não o único. No balanço geral, a maioria das obras é de artistas negros – chega a 55%, embora seja uma maioria pequena.
C&AL: E qual foi o peso e a importância desse critério nesta exposição?
HM: Para mim, essa é uma questão fundamental. Não consigo pensar em uma exposição como essa, no atual momento político, sem uma participação massiva da autoria negra. Por outro lado, não houve uma exclusão de artistas não negros. Mas se fosse uma exposição com 100% de autoria negra, ainda que essa ideia não estivesse em nosso horizonte, teria sua importância estética, artística e política. Não se fala em uma exposição como essa sem levar a autoria em consideração. É possível pensar a presença negra na arte brasileira por várias vias. Se olharmos para a questão da representação dos corpos negros, por exemplo, nesse aspecto essa presença é abundante. Como também é em obras que representam tópicos do universo negro – culinária, religiosidade etc. A mesma presença não aparece quando falamos de uma produção negra não apenas como representação, mas como autoria. Para além da representação, temos que discutir representatividade.
C&AL: A montagem das salas no Tomie Ohtake parece privilegiar mais o confronto de eventos e de visões de distintos períodos. Qual a importância desse paralelismo?
HM: No Tomie, especialmente para essas imagens de viajantes europeus, de um olhar colonial muito presente no nosso cotidiano – estão em livros escolares, na decoração de cafés, nos nossos filmes e novelas – era importante exibi-las com esse atravessamento. De um lado, foi preciso desnaturalizar a relação perversa com essas imagens; politizá-las, elas não devem estar decorando quartos de hotéis, ou nos livros de história como se fossem ilustrações documentais de um período. Mas também porque uma parte significativa da produção de artistas negros brasileiros contemporâneos tem feito essa estratégia de tomar imagens do passado para tematizar questões do presente – utilizando, muitas vezes, imagens de si mesmo, no caso do Paulo Nazareth, ou fotografias de época da própria família, como a Rosana Paulino.
Nathalia Lavigne é jornalista, curadora e pesquisadora, mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. É membro do grupo de pesquisa Estéticas da Memória no Século 21 e desenvolve um trabalho sobre colecionismo digital e imagens de obra de arte no Instagram.